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Entrevista Luciana Alves
RAÇA E ESCOLA
Entrevista com a pesquisadora Luciana Alves
17/01/2023
Luciana Alves é graduada em Pedagogia pela USP. Seu mestrado, na mesma instituição, resultou no livro Ser Branco no corpo e para além dele, publicado em 2013. Sua pesquisa de doutorado em andamento na Unicamp analisa o processo de implementação da Educação para as Relações Étnico-raciais na educação infantil. Além disso, Luciana é pró-reitora Adjunta de Assuntos Estudantis na Unifesp.
Tendo como ponto central a lei 10.639 de 2003 que estabelece a obrigatoriedade do ensino de História e Cultura Afro-Brasileira nas escolas, a equipe do Portal IDeA conversou com Luciana Alves sobre o histórico de construção da lei, seu contexto, desmembramentos, consequências e obstáculos. A pesquisadora fez ainda um panorama das pesquisas sobre o tema e discutiu propostas de políticas públicas, em especial, a formação de professores. Participaram da conversa, pelo Portal IDeA, Mauricio Ernica e Viviane Ramos.
Portal IDeA: A questão curricular foi eleita como central pelo movimento negro, em sua agenda para a educação básica, desde os anos 1970 e 1980. As diretrizes curriculares nacionais para educação para a educação das relações étnico-raciais e para o ensino de história e cultura afro-brasileira a africana, de 2004, citam um conjunto de leis dos anos de 1990. Antes da lei 10.639 de 2003, que altera a LDB, houve leis municipais e estaduais determinando mudanças curriculares para o estudo das relações raciais. Gostaríamos que você começasse historicizando a construção desse marco legal.
Luciana Alves: Essa história se confunde muito com a história do movimento negro e suas bandeiras de luta ao longo do tempo, em uma frente ampla de atuação. Na educação, tema a que eu me dedico, houve um deslocamento histórico do foco do movimento negro. Na virada do século XIX para o XX, houve a tentativa de conscientização da própria população negra a respeito da importância da educação. Como boa parte da população negra não tinha acesso à escola e tinha uma dificuldade da população pobre como um todo em acessar a escola como um direito, já que o acesso não estava democratizado, uma primeira demanda foi conscientizar as próprias famílias negras da importância da educação e conscientizar os negros adultos a respeito da sua identidade racial. O movimento começa olhando para si e para a própria população.
Na década de 1970, a escola passa a ser pensada como uma instituição importante para romper padrões culturais cristalizados no Brasil que depreciam a pertença racial negra e constroem uma série de estereótipos que têm não só efeitos simbólicos, mas também efeitos negativos nas possibilidades de pessoas negras acessarem direitos sociais, bens sociais, como mercados de trabalho, a mídia e uma série de frentes. O movimento negro passa a denunciar que a população negra não tem acesso a essas posições na sociedade, não por uma suposta incompetência, falta de inteligência ou tino para aquela atividade, mas porque existe racismo. A tese defendida foi que, se existe racismo e ele é algo que permeia as instituições sociais, só uma instituição abrangente o suficiente do ponto de vista quantitativo poderia colaborar para desfazer estes estereótipos: a escola.
Na década de 1980 e 90, essa crença vai tomar uma grande proporção por conta da obrigatoriedade de frequência estabelecida para a educação fundamental. A escola é a única instituição da vida pública pela qual todo mundo é obrigado a passar. Dada a abrangência dessa instituição, há uma aposta na escola que vai se materializar institucionalmente nessas disputas, que primeiro são locais, pelo currículo e pela legislação que normatiza a educação. Na década de 1980, essa aposta se desloca para a esfera federal, no contexto da redação da Constituição Federal, e, posteriormente, na construção dos planos nacionais de educação. Há nessa época um plano nacional que já propunha o ensino de história da África, por exemplo, como uma medida para mitigar o racismo no Brasil. Os movimentos participaram da construção da Constituição Federal de 1988, do plano nacional e da nova LDB de 1996. Nessas disputas fica clara que crença muito arraigada de democracia racial permeava os currículos escolares, com a história das três raças. Para combater essa ideologia, houve uma série de marchas nas ruas. Houve reação. Na educação um grupo se contrapôs ao ensino de história da África e a discussão do racismo porque não existiria racismo. Na justificativa da constituinte para não englobar a questão racial no capítulo da educação, percebe-se que os relatores acreditavam que este seria um particularismo e a constituição é, por definição, universalista. Assim, retira-se do capítulo da educação qualquer menção a povos africanos específicos e se fala de matrizes culturais, de forma ampla e genérica.
A agenda vai sendo constituída por pessoas que vão ganhando a cena pública e se especializando em áreas determinadas. Vemos isso muito claramente na constituinte, quando o movimento negro se subdivide para ocupar espaços em diversos grupos, como saúde, educação, para problematizar a questão da raça em todas as áreas. Daí nasce o embrião do GT interministerial que se formaria na década de 1990 no governo de Fernando Henrique Cardoso. Do GT se desdobraria uma série de “medidas” – que ficaram, em boa parte, no papel – com dois focos mais importantes. Um foco era na redistribuição de recursos com reivindicações, por exemplo, por cotas de negro na mídia, em trabalhos com carteira assinada, incentivos às empresas para contratarem pessoas negras. Houve também um primeiro aceno para a redistribuição de vagas no ensino superior, entendendo como uma possibilidade de ascensão mais longeva para a população negra.
Outro foco era cultural. Houve uma forte reivindicação das matrizes negras por políticas de cultura e acesso aos bens culturais e políticas curriculares, incidindo mais no campo simbólico. No Brasil, foi mais fácil levar adiante as políticas que se propuseram mexer no universo simbólico, que não envolvem mexer em privilégios arraigados há muito tempo. Essa dificuldade em se investir nas políticas de redistribuição fica evidente quando vemos que a lei que exige o estudo de história da África é de 2003, mas só em 2012 estabelece-se a lei de cotas. Para compreender esse período, recomendo a tese da Tatiane Cosentino Rodrigues, na qual ela estudou o movimento negro na constituinte pela perspectiva da educação. Em um texto dela junto com a Nilma Lino Gomes, elas analisaram como o movimento negro incidiu sobre a constituinte, criando demandas que só foram atendidas legalmente em 2003. Naquele momento se fortaleceu uma agenda mais coletiva de trabalho e se estruturou uma demanda por modificação curricular que reverbera depois em políticas mais específicas de reestruturação do currículo. No texto da lei 10.639 a ideia foi agregar uma parte da história que foi negada, não só à população negra, mas a todo povo brasileiro. Ela é ainda muito tímida sobre a importância da escola na desconstrução do racismo, o que é trazido posteriormente nas diretrizes.
Portal IDeA: Algo muito rico em consequências na contextualização da lei é o reconhecimento de que existem muitas histórias no Brasil e não uma história única do povo brasileiro. Isso implica uma mudança no modo de reconhecimento da história.
Luciana Alves: Isso vem um pouco da ideia da constituição cidadã, na qual grupos sociais com pautas não universais ou generalistas incidiram sobre a reconstrução do país pós-ditadura e trouxeram uma série de debates sobre a pouca coerência de se contar a história a partir de uma só perspectiva. Ocorreu isso com movimento de mulheres, por exemplo, discutindo a história das mulheres no Brasil e no mundo, porque a história foi contada do ponto de vista masculino. Da mesma forma, a história do mundo era contada da perspectiva europeia de “descoberta” de outros povos. Essa disputa de narrativas sobre o que é o Brasil e os cidadãos brasileiros se deve muito ao fortalecimento dos movimentos sociais no fim da ditadura para a democratização.
Portal IDeA: Isto tensiona um certo ideal de um povo brasileiro único formado por um grande compromisso entre diferentes contribuições de negros, indígenas e europeus. É curioso que Darcy Ribeiro tenha sido um personagem central da LDB, já que a alteração feita pela 10.639 questiona a forma como ele contava a história. Esses movimentos propuseram uma mudança de paradigma no modo de considerar a história do Brasil.
Luciana Alves: Esse movimento se confunde com história dos intelectuais e as disputas acadêmicas em torno da história do Brasil. A tríade Darcy Ribeiro, Sérgio Buarque e Gilberto Freyre foi desbancada pela chamada Escola Paulista de Sociologia, pelas pesquisas feitas pelos pesquisadores da USP e da FESP-SP. Houve uma mudança de um olhar culturalista, que mirava os modos de sociabilidade entre negros e brancos e encontrava laços de solidariedade que rivalizavam com regimes como o Apartheid ou as leis Jim Crow nos Estados Unidos. Ao mesmo tempo, não olhavam a distribuição desigual de recursos e, mais do que isso, consideravam as expressões do racismo cotidiano como estrangeiras e não como expressões cunhadas na relação ambígua entre negros e brancos no Brasil. Havia racismo. Estas pessoas relataram vários episódios de racismo, mas não acreditavam que estes episódios eram suficientes para problematizar essa idealização de um Brasil no qual todo mundo tem um pouco de todo mundo, justificando, de alguma maneira, a existência de uma democracia racial.
Quando surgiu uma sociologia menos calcada nos princípios da cultura e mais nos princípios que organizam as relações sociais, a coisa mudou de figura. O Florestan Fernandes fez isso, muito inspirado na escola norte-americana. De uma certa maneira ele incorporou uma tentativa de quantificação do preconceito no Integração do Negro na sociedade de classes. Ele trouxe uma série de dados sobre como o preconceito impacta as relações sociais, várias perguntas que mostravam como essa harmonia não existia. Esses estudiosos formam uma nova intelligentsia, formariam novos think tanks, dentre os quais se destaca o Cebrap, e contariam com o apoio da Fundação Ford no Brasil. Formou-se aí o presidente Fernando Henrique Cardoso. Houve um deslocamento resultante de três campos: o político, o intelectual e o dos movimentos sociais. Estes autores estavam presentes nos movimentos sociais. O Gilberto Freyre e o Darcy Ribeiro estavam no Congresso do Negro, junto com o Abdias do Nascimento. O próprio Abdias tinha uma pauta cultural muito forte, com o Teatro Experimental do Negro. Quando surge uma nova geração que vai peitar a ditatura, o que significa também peitar o mito da democracia racial, há uma mudança dos agentes no campo. Não é uma substituição, pois eles convivem até hoje, mas uma prevalência de um determinado discurso que se preocupa mais para a equidade, para as desigualdades definidas nas relações sociais, do que para as reminiscências africanas na cultura brasileira.
Portal IDeA: Curiosamente, o PDT no Rio de Janeiro, onde estava o Darcy Ribeiro, foi um espaço importante para candidatos negros que teriam uma importância fundamental, elegendo Abdias do Nascimento, Caó (Carlos Alberto Oliveira dos Santos) e Lélia Gonzales. Em um dado momento, o PDT é o partido que abriga as lideranças negras, com até mais força do que o PT, onde estava Florestan Fenandes, e que se seria importante posteriormente. Estas tensões e ambiguidades também estão postas dentro dos próprios partidos.
Luciana Alves: Usando uma metáfora da Ângela Alonso, algumas figuras funcionam como dobradiças entre um campo e outro. Arthur Ramos, por exemplo, foi orientando do Oliveira Viana, que acreditava no racismo científico. Depois, ele rompeu com essa perspectiva e foi para o culturalismo, era amigo do Freyre e do Darcy Ribeiro, escrevia sobre religiões de matriz africana. Quando ele foi para a Unesco, dirigir uma linha de pesquisa, ele olhou para o Sul e Sudeste e fortaleceu a corrente intelectual que acabou derrubando toda a teoria dele mesmo. O que ocorreu no campo acadêmico também aconteceu no campo político, nos partidos e nos movimentos sociais. A história é muito mais feita de continuidades do que de sucessões. Essas figuras “dobradiças” conseguem abrir caminho para novas propostas de interpretação do Brasil.
Portal IDeA: Nesse mosaico de personagens é importante colocar os intelectuais da Bahia, do Centro de Estudos Afro-Orientais da UFBA, e os do Rio de Janeiro, do Centro de Estudos Afro-Asiáticos da Universidade Cândido Mendes. Desde os anos 1970, eles rediscutem inclusive as teses da escola paulista, marcando essa permanência estrutural da desigualdade racial no Brasil. O Brasil é estruturalmente racista e reproduz essa desigualdade na sua forma de funcionamento. Assim formou-se as matrizes de pensamento de pessoas que atuam no movimento negro, nos partidos políticos e no estado.
Luciana Alves: Há um grupo no Rio de Janeiro que trabalhou com dados quantitativos, liderados por Carlos Hasenbalg, Nelson do Valle Silva e Elza Berquó, que teve importância imensa na articulação do movimento negro e das pautas, especialmente redistributivas. Eles evidenciaram algo que estava dito, mas que era compreendido através de uma perspectiva subjetiva. Quando um negro dizia que existia racismo, ele ouvia “isso é coisa da sua cabeça”‘. Por mais que alguém negue a existência de relações conflituosas entre negros e brancos no Brasil, os dados fazem com que seja impossível dizer que não existe uma distância social entre aqueles que se classificam de um jeito ou de outro. O racismo se materializa em dados estruturais.
Portal IDeA: Vamos voltar aos marcos legais. Há quatro marcos importantes: a lei 10.639 de 2003, as diretrizes curriculares de 2004, a revisão da lei em 2008 e um plano de implementação de 2013. Um detalhe: o fato de o plano de implementação ter sido feito 10 anos depois não é um dado inócuo. Qual era o desafio que se colocava em 2003? Você poderia falar um pouco sobre esses marcos legais e o plano de implementação?
Luciana Alves: Acho que é importante também olhar para as lacunas das leis, como a Tatiane Cosentino Rodrigues fez: o que foi proposto e não foi implementado ou não foi aceito. Quando olhamos para essa linha da legislação, para as disputas, para aquilo chegar da forma como chegou, nós podemos até mesmo entender que o que a gente critica nos dispositivos legais foi geralmente um esforço hercúleo e o possível naquele contexto de disputa. Do ponto de vista da raça, a legislação mais importante é a de 2003 e depois seus desdobramentos. O Armando Simões faz uma discussão sobre a importância das medidas universalistas para a questão social. O movimento negro tensionou pouco o acesso e a permanência. Quando as estatísticas diziam “meninos negros evadem mais”, a gente lia isso como uma expressão do racismo, mas não conseguimos estabelecer uma relação de causa e consequência. A lei 10.639 é importante porque deixa implícita que essa criança reprova ou evade porque ela não se enxerga na escola e no currículo escolar, vivendo uma relação muito difícil com a escola. Várias pesquisas mostram isso. As principais são da Eliane Cavalleiro sobre educação infantil e a da Rita Fazzi sobre o ensino fundamental, que vão documentar esses episódios de violência racial que são vivenciados na escola. Os grupos da Regina Paim e da Fulvia Rosemberg olharam o livro didático para caracterizar a materialização do racismo no currículo. Então está montado o quebra-cabeça. Olha-se pouco para os estudos quantitativos sobre a relação da população negra na escola, mas já há justificativa para essa disparidade: o racismo, a ausência de discussões no currículo e a inépcia dos atores da educação para mitigar e, até mesmo, enxergar estes problemas.
Portal IDeA: As diretrizes de 2004 apontam explicitamente um problema na garantia do direito à educação de modo que pode ser expresso em resultados de matrícula, reprovação, abandono e “sucesso escolar”. Esses resultados estão situados no âmbito da reparação, enquanto a agenda propriamente curricular está situada no âmbito do reconhecimento e da valorização. Como essa agenda, posta desde a constituição como universalizante, vem sendo conduzida e como tem sido articulada com a questão do reconhecimento?
Luciana Alves: Na minha opinião, o movimento negro falha em incorporar a agenda da qualidade da educação, entendida aqui como aprendizagem. Nos dados, há uma diferença no desempenho entre negros e pardos que, por vezes, é percebida como ameaça à forma como o movimento construiu a categoria negro como sendo a maioria da população brasileira, justificando assim que a política não seja para uma minoria quantitativa. Temos um imbróglio para resolver nessa relação entre a pesquisa e o movimento social. Quando o dado aponta que, do ponto de vista da aprendizagem, a criança parda, especialmente a menina, não é o grupo mais desfavorecido, a pesquisa tensiona uma agenda política que demorou décadas para ser construída. Para fazer política focada, é preciso definir o sujeito. O movimento negro vai em um sentido inverso aos movimentos que usam o conceito de gênero, que lutam por não ter binarismo. Na questão racial, a gente luta para haver o binarismo, para identificar a população negra a partir da junção de uma gama de cores e reduzi-las para duas categorias e, a partir disso, dizer: este é o grupo negro. Os dados de aprendizagem problematizam essa construção.
Portal IDeA: Isso não quer dizer que a população parda não viva, na escola, experiências muito duras de discriminação e de não reconhecimento da sua negritude na escola. Provavelmente a diminuição das diferenças de aprendizagem e de conclusão sejam feitas com o custo muito grande de um outro efeito do racismo que é o não reconhecimento, a imposição da lógica de branquitude.
Luciana Alves: Um tema que temos investigado pouco do ponto de vista sociológico, mas que é trazido, de modo controverso, pela militância do colorismo é que, de fato, você ser retinto ou mais claro, ter o cabelo mais liso ou mais crespo, dá condições de interação muito diferentes com os pares. É muito diferente a relação que uma menina negra com o próprio cabelo quando ele é cacheado do que quando é crespo. Juntou-se os pretos e pardos por uma escolha estatística. Lógico que não tem neutralidade nessa escolha, pesquisadores como o Hasenbalg e o Nelson do Vale Silva eram próximos do movimento negro em alguma medida. A qualidade de vida, o acesso de bens e serviços era muito semelhante para um grupo e outro, então juntou-se essas categorias para criar a categoria negro. Nas relações de sociabilidade, no entanto, eu tenho duas categorias.
Portal IDeA: A menor desigualdade entre pardos e brancos na escola não quer dizer que fora da escola essa desigualdade seja mantida. Sabemos bem que as vantagens escolares das mulheres não se traduzem em vantagem e sequer em igualdade no mercado de trabalho. Se a gradiente de cor funciona na escola gerando essas experiências menos conflitivas entre pardos e brancos, em outras esferas sociais isso não vai necessariamente se reproduzir e as pessoas pardas poderão viver experiências de discriminação bastante duras.
Luciana Alves: Se a gente desloca o objeto de análise para a sexualidade e as escolhas afetivas, é possível realmente observar uma cisão entre pretas e pardas. Os indicadores de casamento e relacionamentos afetivo-sexuais, por exemplo, evidenciam que mulheres pretas se casam em menor proporção comparativamente ás pardas, bem como são maioria entre aquelas que experimentam o que tem sido chamado na literatura de “solidão da mulher negra”. Obviamente, a situação das pardas não se equipara às mulheres brancas, pois muitas vezes os estereótipos de uma sexualidade exacerbada pesam mais sobre as primeiras que sobre estas. Um bom debate nesse sentido é realizado pela professora Laura Moutinho no livro “Razão, cor e desejo” e nos estudos da Elza Berquó sobre raça e matrimônio. No entanto, quando olhamos qualquer dado de distribuição de bens e direitos, a junção de pretos e pardos na categoria “negro” é incontestável. A desigualdade racial é entre brancos e negros (pretos e pardos), isto está posto. É olhar para como a sociedade está estruturada e entender o problema.
Outra questão é que o Brasil e, especificamente o movimento negro, entendeu mal o que o Bourdieu disse. O fato de uma população ter sucesso escolar, por exemplo as meninas pardas, e isso não se reverter necessariamente em sucesso socioeconômico não é enfraquecimento de uma luta. A luta na escola é uma, enquanto a luta em outros campos vai se dar sob outros termos.
Portal IDeA: A lei 10.639 mexeu no aparato legal, construiu diretrizes e políticas de implementação, mas a transformação da escola em si é uma outra disputa. Qual o balanço que se faz hoje em dia, na literatura e no movimento negro, das transformações que foram produzidas na escola, ao longo desses 20 anos?
Luciana Alves: O balaço não é positivo. Em uma pesquisa do CEERT, analisamos mais de 300 teses e dissertações sobre o tema. Parte delas pensa a escola e seu papel para a desconstrução do racismo, parte dela pensa a escola como reprodutora do racismo. Quando a leitura é positiva, os estudos não são conclusivos. No geral, são pesquisas que avaliam resultados de atividades propostas e aplicadas pelos próprios pesquisadores que, depois, dizem que as propostas deram certo e tiveram resultados positivos. Do ponto de vista das normativas locais, isto é, do projeto político pedagógico das escolas e dos seus planos de ensino, as pesquisas encontraram uma discrepância entre o que é proposto nos documentos e o que é de fato proporcionado às crianças. O fato de existir uma legislação faz com que as escolas a mencionem nos seus documentos oficiais. Isto já é um passo porque mostra que, ao menos, elas conhecem a legislação. Mas o passo final, a proposta de atividades, não tem sido dado a contento.
Portal IDeA: Então, uma primeira conclusão é que essas prescrições chegam na escola, mas não chegam ao currículo que se realiza, ao currículo em ação, às atividades oferecidas aos alunos.
Luciana Alves: Exato. Outro ponto sobre esses estudos é que, na área de educação, normalmente há muitas pesquisas de estudos de caso e não conseguimos construir um mapa mais geral do que se passa nas redes. Uma rede pode ter diretrizes muito boas, mas uma escola pode a implementar de um jeito e outra, de outro. Faltam estudos mais amplos que nos permitam traçar, de fato, um retrato geral. Há duas tentativas nesse sentido. Uma é o texto Nilma Lino Gomes que aborda uma dimensão do PAR[1] sobre raça e vê como as escolas e munícipios estão respondendo, para ver se a lei está sendo implementada. Outra é uma pesquisa recente do Instituto Alana, feita no Brasil inteiro, com questionários e entrevistas em profundidade e que procura caracterizar a implementação da lei 10639 no país. A literatura acadêmica aponta, como padrão, ou a ausência de implementação ou a implementação insuficiente da lei nas escolas pesquisadas.
Tenta-se também achar as causas do problema e, normalmente, o que se aponta é a política de formação de professores. Essa conclusão se baseia em questionários que perguntam aos professores se eles estudaram o tema raça na graduação e depois dela. A maioria diz que não. Então, o resultado sugere que o gargalo está na formação de professores. Mas essa é uma hipótese que eu problematizo. Se fosse isso, a pessoa com acesso à informação, por consequência lógica, estaria implementando a lei satisfatoriamente, mas não é isso o que vejo na minha pesquisa.
Portal IDeA: A lei cita de três disciplinas que devem trabalhar preferencialmente com a educação para as relações étnico-raciais: história, arte e literatura. Uma impressão que se tem é que, nesses 20 anos, o mercado editorial foi absolutamente transformado, com um enorme crescimento na produção e tradução de obras que tematizam a questão racial, especialmente no que se refere e essas disciplinas. Não seria essa transformação editorial um efeito positivo da lei?
Luciana Alves: A pesquisa bibliográfica apontou que, nas escolas que implementam a lei, a maioria esmagadora o faz pela literatura, porque é a disciplina que disponibiliza mais materiais para o professor e a professora utilizarem. Não sabemos como eles utilizam, mas vimos muitos projetos na área de literatura ou em corpo e movimento, o que isso diz muito sobre como a lei foi interpretada pelos professores, diretores e coordenadores pedagógicos. O fato da lei e as diretrizes enfatizarem as relações não é à toa, pois é onde está a grande questão. Só que na transposição para a aula, o professor vai trabalhar com eventos pontuais, escolher um livro específico para um projeto específico e não vai olhar, por exemplo, para a distribuição das notas entre estudantes negros e brancos e nem para o que se passa no recreio. Algo positivo das diretrizes é mostrar que a escola ensina em todos os aspectos e momentos, para além do que o professor fala em sala de aula. Mas a ênfase nas relações foge à percepção da maioria dos educadores, que transformam eventos em projetos didáticos. O desafio é colocar as relações étnico-raciais no cerne da educação.
Portal IDeA: O que é tratar as relações étnico-raciais como o objetivo da educação?
Luciana Alves: Recentemente escrevi um capítulo de livro sobre isso, ainda não publicado. A partir da leitura das diretrizes e de um conjunto de pesquisas sobre o tema, proponho 3 eixos. Um primeiro se refere a relações que definem os padrões de sociabilidade. É onde vai se ver um menino xingar o outro, a menina negra não conseguir namorico na escola. Enfim, trata das relações que são mediadas pelos estereótipos ligados a negros e brancos e que comungam muito do que outras instituições ensinam às crianças sobre como se relacionar racialmente. Esse eixo é muito enfatizado nas diretrizes de 2004. A questão do reconhecimento e da valorização entra especialmente nesse eixo, mas também no segundo. O segundo eixo, também muito em voga, é o curricular. O currículo precisa ser decolonial, mas não sei se as pessoas sabem fazer e operar um currículo decolonial. Eu acho muito difícil, porque a gente aprendeu através de uma referência prática e precisa a partir da teoria mudar essa prática. O terceiro e último eixo é da relação das crianças com o objeto do conhecimento e se refere à questão das desigualdades de aprendizagem entre as crianças negras e brancas.
Quando falo em “educar para as relações étnico-raciais” tem muita gente que entende como “vamos fazer regras de etiqueta para as relações étnico-raciais. O que eu não posso dizer? Eu posso dizer negro ou preto? Eu posso colar Bombril no cartaz para representar o cabelo de uma menina negra?”. São regras de etiqueta que até podem favorecer a convivência da criança negra naquele ambiente, mas que estão muito longe de produzir a escola que queremos e de que precisamos. Quando eu olho para o currículo, noto que inserir a história do povo do Congo no currículo não é suficiente. É preciso uma reavaliação daquele currículo para entender as diferentes perspectivas de construção do conhecimento, eleger outros centros e trazer isso para o debate. É uma forma de reparar uma história que não foi contada, de valorizar os povos, reconhecer suas particularidades. A gente já elegeu no passado a Europa como centro de produção do conhecimento, mas as pessoas se esquecem que o currículo é uma escolha.
O último eixo, das desigualdades de aprendizagem talvez seja aquele em que menos se prestou atenção. Precisamos ver se o menino está aprendendo ou não o que deveria aprender porque ele tem o direito a aprender. Uma criança que aprendeu, se reconheceu nos livros didáticos e foi respeitada na sua subjetividade pelos colegas, olha, se você a xingar de macaco, ela vai ignorar e seguir adiante. Quem já está formado no movimento negro sente isso. A gente pode ficar bravo, mas a gente sabe que não é aquilo. Quando as pessoas falam “vou trabalhar a autoestima das crianças negras”, entendem que é fazer a criança se sentir bonita. Não! É a criança aprender. Não tem nada melhor para a autoestima do que ser inteligente, saber operar com os saberes socialmente valorizados. Quando a gente fala de educação para as relações étnico-raciais, falamos desses três grandes eixos que podem, de fato, levar à implementação da lei.
Portal IDeA: Você falou de vários desafios. Um de compreensão, que seria ter uma análise mais sistemática. Outro programático, que seria uma reatualização das diretrizes por meio desses três eixos que caracterizam a educação para as relações étnico-raciais. O que você vê como o maior desafio de implementação?
Luciana Alves: O primeiro desafio é uma barreira subjetiva, que o movimento negro e a literatura internacional têm apontado, que diz respeito ao modo como o tema raça foi desqualificado na vivência dos brasileiros. Para negros e brancos, mas muito mais para brancos.
Portal IDeA: Ou seja, raça não é uma condição do negro, mas uma estrutura relacional. Tem um desafio cultural, que é implicar a todos nessa questão.
Luciana Alves: Há evidências de que os professores e professoras que implementam a lei são majoritariamente negros e negras porque a lei dialoga com o subjetivo, com as dores vividas. Por sua vez, o fato de muitos brancos estarem presos na fase da negação ou da culpa dificulta que de fato entendam que isso também é problema deles. Eu aposto muito no debate sobre branquitude porque traz os brancos para entender que eles estão nessa relação e que o racismo não é um problema dos pretos. Eu acho que há uma questão relacional e subjetiva ao mesmo tempo.
O segundo desafio para a implementação, mais complicado, é o da formação de professores. É preciso investir em aspectos teóricos, porque sem boa teoria nenhuma boa prática se sustenta, mas aquele sujeito que está na formação precisa vislumbrar como fazer, que práticas vai propor. Óbvio que não se trata de um tecnicismo, mas quando a formação não aborda aspectos práticos, ela dificulta a transposição do que foi discutido como teoria para as práticas que vão definir o currículo efetivamente realizado. Eu estou olhando para o conjunto de formações ofertadas pela prefeitura de São Paulo para ver o que se faz quando o tema é relações étnico-raciais, o que está sendo discutido. Até agora, o que eu vi foram discussões sobre o que é racismo que também são importantes, porque se o professor não está sensibilizado ele não vai fazer. Só que há o depois, a implementação na sala de aula.
Portal IDeA: Uma pergunta que, confesso é um tanto retórica: conseguiremos ter esse repertório de práticas sem explorar o potencial criativo dos professores e sem que as políticas incorporem uma dimensão “de baixo para cima”?
Luciana Alves: Ao falar de prática, falamos de habilidades, conhecimentos e saberes que o professor tem para trazer ao seu grupo. Algo realmente a ver com as relações raciais para além da proposta de um desenho, da discussão sobre o protagonista de uma narrativa literária. Sobre o modelo de formação, eu tenho lido bastante sobre os modelos de mentoria. Não adianta um expert dizer “a habilidade que você tem que construir é essa”, se não tem em algum momento diálogo, escuta e formulação junto com aquele grupo sobre quais são as competências e habilidades necessárias para aquele contexto para a implementação da educação para as relações étnico-raciais. Em termos de política pública, isso é muito caro e não sei se é factível num país como o nosso. Quando eu trabalhava no CEERT, fizemos uma série de conversas com cerca de 30 professores e desenhamos com eles e elas esse conjunto de habilidades. Algumas habilidades, como identificar um estereótipo racial numa imagem, são tão básicas que poderiam fazer parte de prescrições, mas outras contextuais, exigem análise de situações concretas e a formação por mentoria daria conta melhor de assegurá-las.
Portal IDeA: Outra aposta de política pública seriam as instâncias intermediárias para uma troca mais relacionada com o território.
Luciana Alves: Eu acho que tem espaço para isso. Eu estou analisando as formações e algumas apostam nisso. Na época da pandemia, 2020 e 2021, a prefeitura de São Paulo abriu inscrições para quem tivesse interesse em dar formação. Foram 73 ligadas a raça e, dessas, muitas são territoriais, voltadas a professores de uma dada diretoria de ensino. Assim, dá para olhar o que aqueles sujeitos propuseram, o que foi avaliado pela equipe da rede, o que foi ofertado pelos professores e depreender dali os conhecimentos que essa rede valoriza que seus professores construam. Não é a formação mais contextualizada possível, mas também não é de uma escola só.
Portal IDeA: Ainda sobre a formação de professores, sobretudo nas instituições públicas. As universidades e os cursos de pedagogia se abriram muito mais à questão racial depois do fortalecimento dos movimentos negros nas universidades e, sobretudo, depois das políticas de ação afirmativa. O corpo discente delas, sobretudo, é mais diversificado. Não há consequências dessa transformação? Há mais estudantes negros em cursos de formação de professores de instituições nas quais as relações raciais são mais tematizadas.
Luciana Alves: A pessoa precisa saber que é negra e isso não é fácil. Uma coisa é eu me descrever fisicamente, mas o que isso implica politicamente? Nas universidades públicas isso é muito bem trabalhado, principalmente pelo engajamento nos coletivos de estudantes. Mas nas instituições privadas, a questão racial sequer é tocada. Nas teses e dissertações analisadas, os trabalhos de formação que foram bem avaliados são aqueles que mobilizam a vida dos professores. Eles falam “eu me descobri negra nessa formação”, “chorei muito”, “percebi o tanto que eu sofri racismo”. Esse sujeito negro se constituindo como tal para que ele possa incidir positivamente na realidade. Se não, ser negro é só uma característica física.
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Como citar
ALVES, Luciana. Entrevista Raça e Escola. [Entrevista concedida a] Mauricio Ernica e Viviane Ramos. In RAMOS, Viviane; ERNICA, Mauricio Newsletter do Portal IDeA: Desigualdade racial e os 20 anos da lei 10.639. Portal IDeA, n.12, março.2023.
[1] O PAR é o Plano de Ações Articuladas é um documento cuja finalidade é subsidiar a avaliação diagnóstica das redes de ensino que deve ser elaborado no âmbito dos Estados e Municípios que aderiram ao Plano de Metas e Compromissos Todos pela Educação, programa estratégico do Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE) do Ministério da Educação. Para maiores informações clique aqui.