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Entrevista Issaka Bano
LITERATURA AFRICANA
Entrevista com Issaka Bano
23/01/2023
Issaka Bano nasceu no Níger, onde realizou sua educação básica. Em 2007, ele se mudou para o Brasil. Após concluir uma primeira formação em programação, Issaka graduou-se em Relações Internacionais. Durante o curso, ele trabalhou no escritório do Itamaraty em São Paulo. Esta experiência o levou a pesquisar a escolarização de refugiados africanos de língua francesa em São Paulo, durante seu mestrado na Faculdade de Educação da Unicamp. Seu interesse por literatura o levou a se aprofundar na literatura africana, sobretudo a produzida em língua francesa, dando origem à pesquisa que realiza nesse momento no curso de doutorado em Sociologia no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp.
Desde de 2019, Issaka participa das atividades do Coletivo Raízes. São dedicado à promoção, ao incentivo e à divulgação da literatura africana, grupo que ele coordena atualmente. Entre as atividades realizadas pelo Coletivo Raízes, está a organização e publicação de dois livros “África(s) na(s) literatura(s): revisitando narrativas que tecem complexos culturais” e “As Áfricas dentro de mim: coletânea de poesias e contos”, ambos pela editora Alupolo. Em relação à coleção África(s) a(s) literatura(s), há a previsão para a publicação de mais 6 livros, o terceiro pela Editora Kapulana, com análise de romances africanos, entrevistas com escritores africanos de língua portuguesa, francesa e inglesa, além de discussão teórica sobre o tema.
A equipe do Portal IDeA conversou com Issaka Bano abordando a relação existente entre oralidade, escrita e memória na literatura africana, sua formação e principais autores. Por fim, discute-se a recepção da literatura africana no Brasil. Participaram da conversa, pelo Portal IDeA, Mauricio Ernica e Viviane Ramos.
Oralidade, escrita e memória
Portal IDeA: Eu gostaria de começar essa conversa ouvindo a respeito da escrita e da oralidade na África. Eu gostaria que você falasse um pouco sobre a importância da oralidade, da narrativa oral e de sua relação com a literatura. Eu queria também que você comentasse sobre a presença da escrita na África, que é muito antiga.
Issaka Bano: No primeiro volume da coleção História Geral da África, os editores falam das metodologias usadas para escrever a coleção inteira. Tinha-se a ideia de reunir o máximo de informações possíveis e necessárias para escrever a história da África. Quais eram as fontes usadas? As escritas, a arqueologia, a tradição oral, a linguística, a antropologia e a etnologia foram as principais fontes. No que diz respeito às escritas, no plural, tinha o árabe, porque parte do continente africano teve colonização árabe antes da colonização europeia, e por isso a escrita em árabe é muito presente. Antes do árabe havia outras escritas. Um dos autores que fala bastante das línguas escritas que existiam antes da colonização é o Cheikh Anta Diop, sua tese de doutorado, inicialmente rejeitada pela banca, , além de defender que o Egito antigo havia sido uma cultura negra, mostra a existência de outras língua e suas ramificações na região. Ele produziu uma obra extensa em que se dedica tanto à escrita do Egito antigo quanto com o wolof, uma língua no Senegal. A escrita sempre existiu na África, mas a impressão que os historiadores têm ou tiveram, um deles o Joseph Ki. Zerbo, é que as colonizações europeias e árabes destruíram, num dado período, as escritas existentes. Ki. Zerbo, no primeiro capítulo do volume I da Coleção História Geral da África, menciona que essas fontes, as escritas, são mal distribuídas no tempo e no espaço. Os séculos mais “obscuros” da história africana são justamente aqueles que não se beneficiam do saber claro e preciso que emana dos testemunhos escritos, por exemplo, os séculos imediatamente anteriores e posteriores ao nascimento de Cristo. Quando o colonizador chega, o árabe ou o europeu, ele impõe uma forma de escrita. Ele exige que uma determinada população aprenda escrever naquela língua, seja o árabe, o francês, o português, espanhol ou alemão.
A forma escrita que conhecemos hoje chega com as escolas missionárias e, a partir de então, começa-se a escrever em francês, em inglês e nas outras línguas europeias. Me atenho aos países francófonos. Sob o domínio colonial, existiam impressoras nos países africanos, eram impressoras da administração colonial que imprimiam jornais, boletins, notas. Aí começam a surgir os escritores, poetas, contistas que publicavam alguns textos. Tudo sob muito controle, é claro, só era publicado aquilo que agradava o editor. Depois, a partir dos anos 1920 e 1930 começam a surgir de fato romancistas. O romance “Batouala” de René Maran é considerado o primeiro verdadeiro romance negro, africano. O autor é da Martinica, mas vai para a África em missão trabalhar para a colonização francesa. Ele escreve um romance relatando sua experiência no continente africano e sobre como os africanos escravizados eram tratados pela colonização. Esse romance foi publicado na França posteriormente, em julho de 1921. Depois disso, começaram a surgir outros romances e a escrita se intensifica, mas ainda assim havia certos limites, como a falta de impressoras e editoras. As temáticas abordadas nos romances de formação eram espinhosas, então eles não tinham facilidade de publicar nas editoras. Os romances escritos em francês surgem nesse contexto.
Por sua vez, a oralidade está presente em toda a história do continente africano. Ainda no capítulo do Ki-Zerbo, o historiador observa que essa fonte é um verdadeiro museu vivo, um repositório e vetor do capital de criações socioculturais acumuladas pelos povos ditos sem escrita. A tradição oral nunca foi esquecida, ela tem esse papel fundamental de preservar a memória de povos, culturas, etnias e religiões do continente africano. Um dos autor que eu acompanhando desde o meu ensino fundamental e continuo estudando, Amadou Hampâté Bâ, do Mali, é considerado um dos maiores estudiosos da tradição oral no continente africano. Seu livro autobiográfico “Amkoullel, o menino fula” e depois o segundo,”Oui mon commandant!”, que ainda não foi traduzido no Brasil, sobre a importância da oralidade na formação dele enquanto sujeito, intelectual, formador de opinião e contador de histórias. Essa formação a partir da oralidade é transmitida a partir de uma personagem que aparece muito na formação de Amadou Hampâté Bâ que é o Tierno Bokar, um griô, um mestre da palavra. O Tierno Bokar praticamente formou o Amadou Hampâté Bâ, transmitindo uma parte do conhecimento que ele tinha antes de ir para a escola. O Amadou Hampâté Bâ é do Mali, um país que foi colonizado primeiro pelos árabes e depois teve colonização europeia, país em que hoje mais de 90% da população é mulçumana. O Hampâté Bâ teve formação na escola corânica, antes da escola francesa, assim como eu. Eu vejo uma clara relação entre essa formação e a oralidade, e dessa formação com a oralidade e a própria formação da personalidade e da atuação dele.
Portal IDeA: Sobre o Amadou Hampâté Bâ, no livro “Amkoullel, o menino fula” duas coisas chamam a atenção. Primeiro que o texto é repleto de marcas de oralidade, é uma escrita muito oralizada, inclusive na estrutura do texto. Outra é a relação entre oralidade e memória. No primeiro parágrafo, em uma seção que ele chama de a memória africana, ele escreve
Muitos amigos que leram o manuscrito mostram-se surpresos. Como é que a memória de um homem de mais de oitenta anos é capaz de reconstituir tantas coisas e, principalmente, com tal minúcia de detalhes? É que a memória das pessoas de minha geração, sobretudo a dos povos de tradição oral, que não podiam apoiar-se na escrita, é de uma fidelidade e de uma precisão prodigiosas. Desde a infância, éramos treinados a observar, olhar e escutar com tanta atenção, que todo acontecimento se inscrevia em nossa memória como certa virgem. Tudo lá estava nos menores detalhes: o cenário, as palavras, os personagens e até suas roupas. Quando descrevo o traje do primeiro comandante de circunscrição francês que vi de perto em minha infância, por exemplo, não preciso me “lembrar”, eu o vejo em uma espécie de tela de cinema interior e basta contar o que vejo. Para descrever uma cena, só preciso revivê-la. E, se uma história me foi contatada por alguém, minha memória não registou somente seu conteúdo, mas toda a cena – a atitude do narrador, sua roupa, seus gestos, sua mímica e os ruídos do ambiente, como os sons da guitarra que o griot Diêli Maadi tocava enquanto Wangrin me contava sua vida, e que ainda escuto agora….
Então, segundo ele, a oralidade tem relação com o modo de construção da memória. É como se a oralidade inscrevesse na memória uma cena, antes de tudo. E quando se trata da memória do relato de alguém, não é só a memória do texto no qual o relato é narrado, mas do texto em seu contexto. Isto é uma característica específica do Hampâté Bâ ou uma característica mais geral?
Issaka Bano: Eu acho que tem tudo a ver com a oralidade. É uma característica geral, principalmente de quem trabalha com oralidade. Eu acho interessante quando ele fala sobre a memória, porque ele descreve muito bem como a memória participa da oralidade em uma sociedade. Essa memória é submetida a treinamentos intensos para guardar movimentos, sons, momentos, nomes, eventos, todos os detalhes dentro de uma sociedade. Hoje estamos numa época que tudo é registrado no caderno, no celular, no computador, mas naquela época não. Para saber a receita de um remédio para curar uma determinada doença, precisava de alguém que iria guardar todos os detalhes de como essa receita é feita. Naquelas épocas as pessoas tinham um mapeamento geográfico de cidades, aldeias, de como ir e como voltar. Quando ele fala do griô, ou daquele que é detentor da palavra, responsável em guardar os conhecimentos e transmitir esses conhecimentos, ele fala de alguém que tem que ter essa capacidade de memorizar, guardar, contar de novo para os mais novos e transmitir esse conhecimento de modo preciso. Para isso, a memória é submetida a treinamentos, como repetição, repetição, repetição, que é presente na oralidade.
A escola corânica é interessante, nesse sentido. Para se tornar uma espécie de pastor, naquela época a pessoa tem que decorar todo o Alcorão. Para isso ela vai todos os dias à escola corânica, onde o “professor” escreve um versículos e o aluno fica lá sentado, lendo em voz alta, com outros alunos pessoas também lendo em voz alta, todo mundo gritando e ouvindo o que todo mundo está falando, mas sem ninguém prestar atenção na fala do outro, só no que o próprio aluno está falando e repetindo. Decora-se cada versículo, aí a pessoa mostra ao professor que decorou. E assim por diante, até decorar o alcorão inteiro. Claro que há alunos que param na metade do caminho, como eu. Isso é muito presente nos países africanos majoritariamente mulçumanos.
A tradição oral também cumpre esse papel de decorar. É quase um ditado, pois para as informações serem mantidas na memória, essa informação tem que ser repetida várias vezes. Por isso as histórias, as lendas, os mitos, os conhecimentos são repetidos várias e várias vezes. É muito comum no Mali, mas também no Níger e em outros países, que haja noites de encontro nas quais um griô ou um ancião conte histórias. Os jovens, adolescentes e adultos ficam ao redor dele ouvindo as histórias que vão ser contadas inúmeras vezes. O treinamento da memória também está nesses momentos, e consciente ou inconscientemente a sociedade faz isso. O Amadou Hampâté Bâ fala que a gente submete a memória à repetição para ela que não se perca. Sobre o Alcorão, quando eu estava no Níger, eu sempre ouvia: ” Por que vocês decoram tanto as coisas?” E a resposta é que “o livro, o Alcorão pode se perder, o papel ele desaparece. Mas a memória não”. Eu memorizei cerca de 15, 20% do Alcorão e, até hoje, 20 anos depois, isso está intacto na minha memória. Não esqueci nenhuma palavra.
Portal IDeA: Em que língua você lia o Alcorão?
Issaka Bano: Essa é uma pergunta muito interessante e curiosa. Foi em árabe, mas não necessariamente você precisa falar árabe para decorar o Alcorão. Eu não sei o significado e a definição de absolutamente nada que eu decorei. Com o passar do tempo, você vai aprendendo, mas você decora nos primeiros anos. Depois você vai aprendendo a língua árabe e o que está escrito no alcorão. Hoje há escolas mais profissionalizadas, escolas árabes, mas antes você primeiro decorava e depois você descobria o que você decorou.
Portal IDeA: Tem algo muito importante no que você falou: essa aposta muito grande na memória humana. O texto pode se perder, mas a memória fica. E, no limite, o texto escrito ele só faz sentido se tem um leitor que dá vida a ele. A ideia subjacente ao que você conta é que o suporte da memória é um grupo de pessoas que vivem, reproduzem e transmitem a memória.
Issaka Bano: Eu suspeito que também por uma série de limitações: papel, escolas, saber escrever. Então, tiveram que procurar outras formas. Isso é uma perspectiva tanto a partir da tradição oral como da memorização do Alcorão. Acredita-se que o papel pode desaparecer um dia, pode ter uma crise na qual vão perseguir todos os mulçumanos, vão queimar os Alcorões, mas ainda assim o Alcorão vai estar na memória dos fiéis. A tradição oral também pode, talvez, ser entendida nesse sentido. De que os elementos, as culturas, os contos, a sabedoria precisa ser mantida dentro da memória, para além de tudo.
Formação da literatura africana
Portal IDeA: No volume 8 da História Geral da África, no capítulo sobre literatura, os autores afirmam que a poesia foi um gênero privilegiado pelos autores africanos e que o romance seria o gênero mais europeu. A poesia permitiria mais que essa tradição da narrativa africana pudesse se desenvolver. Você está de acordo com essa interpretação?
Issaka Bano: Eu concordo. Têm vários escritores e intelectuais que concordam e vão nesse caminho. A poesia foi uma das primeiras manifestações artísticas e literárias no continente africano. No período da colonização, os primeiros textos que começaram a ser publicados eram poemas, contos e outros tipos de escrita. O romance em si nasce bem depois, muito a partir da relação do homem negro africano com o europeu. A França tem uma tradição literária antiquíssima. Uma das primeiras coisas que o Mongo Beti (pseudônimo de Alexandre Biyidi Awala), Léopold Sédar Senghor e outros intelectuais africanos relatam ter feito quando foram para Paris foi se debruçarem sobre os romances de escritores franceses.
Portal IDeA: Essa é uma literatura que se desenvolve com autores africanos, mas que prontamente circula nos países nos quais se falam as línguas europeias em que os livros estão escritos. Tem uma circulação na França, nos países francófonos. Vale o mesmo para o Inglês. Em suma, é uma literatura que nasce mais internacionalizada. Como isso se deu?
Issaka Bano: Sim, é uma literatura que nasce fora do continente africano, a partir de intelectuais escritores que vão para a França. Um dado curioso é que até aquela época, começo dos anos 1960, não tinha universidade com curso de letras e história nos países africanos de língua francesa. Quem concluía o ensino médio ou o curso técnico e quisesse fazer uma faculdade tinha que se deslocar para Paris, para a metrópole, fazer a graduação. Muitos acabam fazendo letras, como o Mongo Beti que também foi professor por muitos anos na França. Ali em Paris eles começam a escrever seus romances, mas têm dificuldade de publicar em editoras franceses. Daí acharam necessário fundar uma editora própria, a Présence Africaine, com o apoio de intelectuais franceses, entre eles o Sartre. Eles precisavam que seus romances fossem publicados em um lugar de confiança que não restringissem, ou controlassem a criatividade artística, as temáticas que seriam publicados. Em relação às temáticas, é importante observar que estamos no período colonial. Muitos países estavam lutando para conquistar suas independências. E a literatura teve um papel importante nesse processo: denunciar a violência colonial.
Portal IDeA: É uma literatura que tem um reconhecimento questionado no início, mas vai conseguir reconhecimento ao longo dos anos e reconhecimento de grande envergadura.
Issaka Bano: Os escritores africanos vão ganhando uma envergadura maior e um reconhecimento na cena da literatura mundial. Suas obras estão cada vez mais presentes. Prof. Nazir Ahmed Can e eu termininamos de escrever um artigo recentemente sobre a recepção de Alain Mabanckou no Brasil e os principais temas estudados nas universidades brasileiras. Quando fui escrever eu pesquisei sobre outros países nos quais ele foi traduzido, descobri que ele estava publicado em sueco, em polonês, espanhol, alemão, italiano. Assim como outros e outras africano. A Fatou Diome tem muitas obras traduzidas, inclusive em chinês ou japonês. Eu acho que há um interesse claro do ocidente, ou pelo menos pelo meio acadêmico do ocidente, em estudar escritores africanos de um modo geral. As principais universidades europeias têm centros de estudos africanos. Elas têm feito um esforço para atrair esses escritores e intelectuais para trabalharem em seus departamentos. Por exemplo, a própria Fatou Diome e o Alain Mabanckou, que está na UCLA, no Departamento de Estudos Africanos. Nós estamos tão acostumados à literatura europeia, à narrativa europeia, que é necessário olhar o mundo a partir de uma outra perspectiva, outra narrativa. Quando li o livro “Fique comigo” de uma escritora jovem, a Adébáyò Ayòbámi, eu pensei: É o tipo de narrativa que a gente precisa. Qualquer pessoa, de qualquer lugar, vai ler e dizer “eu li alguma coisa diferente”. Eu lembro de uma fala do Antônio Candido, numa palestra na USP, na qual perguntaram se ele continuava lendo obras, acompanhando a literatura moderna, os autores recentes. Ele respondeu que tinha parado em 1980 e que não lia mais nada, porque ele achava que não tinha novidade nas obras publicadas, que todos os romances que ele lia, ele conseguia achar uma similaridade com algo que ele leu antes. Novidade, mesmo, ele não encontrava. Não estou tratando da literatura ocidental aqui, mas quando eu leio escritores africanos, eu consigo ver uma novidade na produção literária. O livro “Fique comigo” da Adébáyò e “Contornos do dia que vem vindo” de Léonora Miano são excelentes. Escritoras novas que produziram duas obras magníficas que você lê e fala “isso é um romance diferente. Eu estou lendo uma novidade aqui”.
Portal IDeA: Falando sobre autoras, na coletânea de História Geral da África fala-se muito pouco sobre elas no capítulo sobre literatura. Já nos livros que você organizou, as mulheres aparecem com muito mais força. Você pode falar um pouco mais sobre a literatura africana escrita por mulheres?
Issaka Bano: Desde o primeiro livro que a gente organizou, uma antologia intitulada “As Áfricas dentro de mim”, uma das conversas que eu tive é que eu queria que metade dos autores fossem mulheres e a outra metade, homens. Eu sempre tive essa preocupação da paridade. Elas aparecem no cenário literário só nos anos 1970. As mulheres, nas sociedades africanas nos anos 30, 40, 50, tinham um outro papel. Elas começam a ir para a escola recentemente, há uns 30 anos. Comparando a taxa de alfabetização entre homens e mulheres, talvez a deles estejam entre 60-70% e elas 15%, principalmente em países mulçumanos, porque se casam novas. Hoje, a educação nestes países avançou bastante e as mães, principalmente, têm exigido que as filhas possam estudar, fazer uma universidade, ocupar cargos públicos, de participar da sociedade de forma efetiva. Quando as escritoras africanas chegam ao espaço literário, elas chegam com uma força muito grande. Hoje eu leio mais romances de mulheres do que de homens. Se a pessoa me para e pede indicação de 5 romances, os 4 primeiros que vêm na minha cabeça são de mulheres e um, de homem. Eu citei dois, um da Léonora Miano e outro da Adébáyò Ayòbámi. A escrita delas traz uma outra perspectiva, uma perspectiva feminina da realidade. A gente está dentro de uma sociedade com problemas sociais e elas trazem questões que não são discutidas. Eu gosto bastante do Chinua Achebe, um baita escritor, considerado o pai da literatura africana, mas quando ele faz a análise do papel da mulher na sociedade, mas ele falha em alguns pontos. As únicas pessoas que conseguem trazer uma outra perspectiva, uma outra leitura são elas. Tem outra escritora nigeriana Buchi Emecheta que traz outra perspectiva além de Chinua Achebe.
Resumindo, as mulheres têm um papel fundamental Fatou Diome, Calixthe Beyala, Adébáyò, são dezenas de escritoras africanas que estão produzindo o tempo inteiro obras magníficas, trazem uma outra reflexão, falando a partir de uma outra perspectiva. O livro “Fique comigo” me interessou porque em sociedades africanas, principalmente mulçumanas, a mulher não tem muita liberdade e a Adébáyò discute, por exemplo, questões como educação sexual, monogamia e disfunção erétil. São temas tabus, mas são que precisam ser discutidos. Aquele problema, naquela sociedade, só existe porque não se discute educação sexual. Um tema interessantíssimo também é a disfunção erétil. Você vai discutir isso numa sociedade extremamente machista? No livro, os personagens centrais se casam, mas não conseguem ter filho. Se ela não está engravidando, o problema é ela. A família inteira, toda a sociedade acha que a personagem não consegue ter filhos, que o problema é ela. Então, eles vão achar uma segunda esposa para o personagem. Acontece uma tragédia, ele se livra da segunda esposa, mas continuam culpando a mulher. Em nenhum momento a família, a sociedade, as pessoas, dentro da narrativa, pensam que talvez a culpa seja do homem. Eu acho interessante pelas questões que trazem a escrita feminina no continente africano. A Calixthe Beyala é outra escritora que eu gosto bastante, mas que eu acho que vai demorar bastante para ser traduzida no Brasil, porque a escrita dela é bem intensa. Ela é bem crítica, é uma escritora que eu acho que vale a pena conhecer.
Portal IDeA: Toda a tradição oral dos griôs, da reconstituição da memória, é uma tradição masculina?
Issaka Bano: Me parece mais masculina. Eu acho que vi duas, três griôs mulheres, no máximo, nos meus 18 anos no Niger. Já griôs homens têm um monte. O Amadou Hampâté Bâ tenta justificar em algum momento da vida dele que isso era um papel do homem, que a mulher tinha um outro papel, uma outra função dentro da sociedade.
Portal IDeA: Nesse mesmo capítulo da coletânea História Geral da África, as crianças não são citadas, não se fala sobre literatura infantil. Por outro lado, no Brasil, vemos um movimento de literatura infantil voltada para a temática de raça e antirracismo. Vemos indícios disso nas indicações de leitura nas escolas, em revistas de parentalidade, e na presença de editoras, como a Mostarda, voltada para a literatura infantil com essa temática. Pensando nesse contexto, queríamos te ouvir sobre a literatura infantil africana.
Issaka Bano: Algumas semanas atrás, uma professora da educação básica entrou em contato comigo pedindo indicação de literatura infantil. Essa literatura existe nos países africanos, mas não são traduzidas aqui no Brasil. Eu tenho uma lista de obras de escritores sobre literatura infantil que foram publicadas no Brasil, mas ainda assim é muito pouco comparado com romances para adultos. Eu não consigo entender o porquê não são traduzidas, pois a minha impressão é que literatura infantil vende mais do que os romances adultos. Tem razões editoriais e um outro motivo, mais geral para não serem traduzidas, é que a literatura africana de língua francesa, como um todo, está chegando mais intensamente ao Brasil agora.
Portal IDeA: Essa literatura infantil é mais recente?
Issaka Bano: Sim, de um modo geral. O Alain Mabanckou tem um livro publicado no Brasil que é Irmã-Estrela. Essa publicação teve parceria com o Ministério da Educação, justamente com esse interesse de trazer a literatura infanto-juvenil em escolas e outros ambientes. Há outros autores e autoras que também foram traduzidos, mais ainda é bem pouco. Na minha lista tem cerca de 14 livros.
Recepção da literatura africana no Brasil
Portal IDeA: Vamos falar sobre a recepção da literatura africana no Brasil? Quais os caminhos ela segue? Imagino que primeiro tenha chegado a literatura de língua portuguesa e depois as outras, a em língua francesa e inglesa.
Issaka Bano: Eu conheço menos a literatura africana de língua portuguesa. Normalmente, alguns livros são publicados primeiro em Angola, Moçambique, Guiné-Bisau e Cabo Verde, ou então publicados em Portugal e depois republicado aqui no Brasil, adaptado ao português do Brasil. O trânsito é mais ou menos esse, ele vai pra Portugal primeiro para depois vir para o Brasil. O mais recente livro do Pepetela que foi traduzido aqui no Brasil, o romance “Jaime Bunda-um agente secreto”, já tinha sido publicado em Portugal há muito tempo e depois foi feita a publicação aqui pela editora Kapulana adaptada para o português brasileiro.Mais recentemente, tem-se publicado obras diretamente em editoras brasileiras, por exemplo a Editora Malê, a editora Kapulana, a Companhia das Letras e a Globo Livros. Todas essas editoras têm publicado diretamente, mas isso é muito recente.
Portal IDeA: Em uma discussão organizada pelo Coletivo Raízes São Paulo, foi falado que o governo Salazar regulava o trânsito da literatura africana em língua portuguesa para o Brasil. Com essa triangulação, regulava qual literatura africana chegava ao Brasil.
Issaka Bano: Portugal fez um esforço muito grande para publicar os autores africanos de língua portuguesa, ao mesmo tempo exercendo poder sobre sua difusão.
Portal IDeA: E quanto à literatura em língua francesa?
Issaka Bano: Quanto à literatura africana de língua francesa, eu não sei qual foi o primeiro romance traduzido e publicado no Brasil. No entanto, professor Fernando Albuquerque de Mourão () coordenou uma coleção muito importante pela Editora Ática na qual aparecem os primeiros romances de escritores africanos de língua francesa traduzidos no Brasil. Tem o “Aventura ambígua” Bernard Dadié, por exemplo. Logo depois começam a surgir outras traduções de outros escritores. Essas traduções se intensificam nos últimos 10 anos, quando tem o interesse da editora Companhia das Letras, mais recentemente a editora Kapulana e a Malê.
Portal IDeA: A recepção da literatura de língua inglesa segue um caminho parecido com a de língua francesa ou tem alguma particularidade?
Issaka Bano: Por causa do Chinua Achebe e outros escritores que eu mencionei, a literatura africana de língua inglesa chega um pouco antes da em língua francesa, mas depois da em língua portuguesa. Um pesquisador da federal do Rio de Janeiro chamado Ricardo Luiz Pedrosa Alves mostra dados quantitativos sobre as publicações dessas obras: os autores traduzidos e as pesquisas realizadas.
A literatura africana de língua francesa tem uma porcentagem bem pequena, comparando com a de língua inglesa e portuguesa. A recepção da literatura africana de língua inglesa é bem maior que a em língua francesa. A universidade tem um papel fundamental na divulgação dessas obras. Primeiro o autor é estudado, analisado e a pessoa que faz a pesquisa de mestrado ou doutorado faz a análise com o romance original, na língua que foi escrito, e nas faculdades de letras, também há propostas de tradução desses romances. Muitos desses romances, inicialmente, foram traduzidos das línguas inglesa e francesa porque, nas faculdades de letras, alguém propôs a pesquisa de mestrado e doutorado sobre como traduzir a obras. Posteriormente, alguma editora acabou publicando o livro.
Portal IDeA: A literatura africana tem sido estudada nas universidades brasileiras?
Issaka Bano: Num artigo que eu vou publicar com o Prof. Nazir Ahmed Can na Cambridge Journal of Postcolonial Literary Inquiry, percebemos que, no mundo lusófono, o Brasil é o que mais estuda literatura africana em língua portuguesa, inglesa e francesa. Muito mais do que Portugal, embora Portugal tenha começado a publicar e produzir essa literatura bem antes. Têm vários fatores envolvidos. Um é o interesse da população em si. Outro é o efeito da lei 10.639. Tem havido uma grande discussão sobre questões raciais no Brasil e o movimento negro brasileiro várias vezes reivindicou a presença dessa literatura no país, o que não se tem em Portugal. Em Portugal não há uma lei 10.639 sobre a obrigatoriedade de ensino da África e da literatura afro-brasileira em sala de aula.
A gente percebeu que, embora as universidades portuguesas sejam, mais antigas, o Brasil tem muito mais universidades com departamentos de estudos sobre a África e o continente africano. Quando eu estava escrevendo o artigo, eu sofri para achar publicações e produção de teses e dissertações em universidades portuguesas sobre literatura africana de língua francesa. Eu mandava mensagem para meus amigos em Portugal perguntando e as respostas eram “aqui em Portugal a gente não tem muito interesse”. Outra comparação, o Alain Mabanckou tem só um livro publicado em Portugal, enquanto aqui no Brasil já estamos no quarto ou quinto livro. Outros autores não foram nem traduzidos. Eu acho que o Brasil tem tido um interesse muito grande para publicar os autores.
Claro que, no meu caso, que leio e compro muitos livros, eu vejo que o que foi publicado no Brasil é pouco comparado com o que existe. Mas, ao mesmo tempo, o que foi traduzido e publicado no Brasil é superior do que muitos países, inclusive alguns na Europa. Claro que a gente não pode comparar com a França, que foi o país colonizador dos países africanos de língua francesa e os escritores africanos basicamente se formaram na França, publicaram lá e as obras são publicadas em francês. Com a França, não tem comparação possível.
Eu gosto bastante do que tem se desenvolvido aqui no Brasil, embora tenha essas ausências. Eu gosto muito do Mongo Beti, ele tem mais de dez romances publicados. Outro romance interessante é o Pelourinho”, do Tierno Monénembo, traduzido e publicado em 2022 pela Editora Nós. Esse romance é sobre um africano que sai do continente, ele não fala especificamente de qual país, e vai para Salvador. A missão inicial dele era descobrir quem são os primos distantes da África que residiam na América Latina. Essa experiência é o contrário do que é feito pelos afrodescendentes de ir para África para tentar descobrir de onde vieram seus ancestrais. Na narrativa do romance o movimento é descobrir quem são os descentes daquele que saíram do continente durante o tráfico negreiro.
Portal IDeA: Para finalizar, o que você recomendaria para ser lido como um panorama da literatura africana?
Issaka Bano: Eu indicaria fortemente “Fique comigo”, “Contornos do dia que vem vindo”, O Pelourinho”, “Aventura Ambígua”, do Cheik Hamidou Kane. Os livros da Scholastique Mukasonga, “Mulher de pés descalços” e “Baratas”. O Chinua Achebe tem uma trilogia que eu gosto bastante: O mundo se despedaça, A paz dura pouco e A Flecha de Deus. Sobre poesia, eu não conheço nenhum livro traduzido. Há poemas soltos, mas não tem um livro de poesia traduzido. Eu gosto também dos autores negros brasileiros. Recentemente eu tenho lido novamente a Conceição Evaristo e a Sueli Carneiro que não é uma romancista, Cuti, Maria Firmina dos Reis. Li quase todas as obras de Machado de Assisti. Alguns anos atrás ganhei de presente de aniversário a coleção “Todos os romances e contos consagrados” e li todos os livros.
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Como citar
BANO, Issaka. Entrevista Literatura Africana. [Entrevista concedida a] Mauricio Ernica e Viviane Ramos. In RAMOS, Viviane; ERNICA, Mauricio Newsletter do Portal IDeA: Desigualdade racial e os 20 anos da lei 10.639. Portal IDeA, n.12, março.2023.