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RA\u00c7A E ESCOLA<\/p>\n

Entrevista com a pesquisadora Luciana Alves
\n17\/01\/2023<\/h1>\n

Luciana Alves \u00e9 graduada em Pedagogia pela USP. Seu mestrado, na mesma institui\u00e7\u00e3o, resultou no livro Ser Branco no corpo e para al\u00e9m dele<\/a>, publicado em 2013. Sua pesquisa de doutorado em andamento na Unicamp analisa o processo de implementa\u00e7\u00e3o da Educa\u00e7\u00e3o para as Rela\u00e7\u00f5es \u00c9tnico-raciais na educa\u00e7\u00e3o infantil. Al\u00e9m disso, Luciana \u00e9 pr\u00f3-reitora Adjunta de Assuntos Estudantis na Unifesp.<\/p>\n

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Tendo como ponto central a lei 10.639 de 2003<\/a> que estabelece a obrigatoriedade do ensino de Hist\u00f3ria e Cultura Afro-Brasileira nas escolas, a equipe do Portal IDeA conversou com Luciana Alves sobre o hist\u00f3rico de constru\u00e7\u00e3o da lei, seu contexto, desmembramentos, consequ\u00eancias e obst\u00e1culos. A pesquisadora fez ainda um panorama das pesquisas sobre o tema e discutiu propostas de pol\u00edticas p\u00fablicas, em especial, a forma\u00e7\u00e3o de professores. Participaram da conversa, pelo Portal IDeA, Mauricio Ernica e Viviane Ramos.<\/p>\n

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Portal IDeA<\/strong>: A quest\u00e3o curricular foi eleita como central pelo movimento negro, em sua agenda para a educa\u00e7\u00e3o b\u00e1sica, desde os anos 1970 e 1980. As diretrizes curriculares nacionais para educa\u00e7\u00e3o para a educa\u00e7\u00e3o das rela\u00e7\u00f5es \u00e9tnico-raciais e para o ensino de hist\u00f3ria e cultura afro-brasileira a africana, de 2004, citam um conjunto de leis dos anos de 1990. Antes da lei 10.639 de 2003, que altera a LDB, houve leis municipais e estaduais determinando mudan\u00e7as curriculares para o estudo das rela\u00e7\u00f5es raciais. Gostar\u00edamos que voc\u00ea come\u00e7asse historicizando a constru\u00e7\u00e3o desse marco legal.<\/p>\n

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Luciana Alves<\/strong>: Essa hist\u00f3ria se confunde muito com a hist\u00f3ria do movimento negro e suas bandeiras de luta ao longo do tempo, em uma frente ampla de atua\u00e7\u00e3o. Na educa\u00e7\u00e3o, tema a que eu me dedico, houve um deslocamento hist\u00f3rico do foco do movimento negro. Na virada do s\u00e9culo XIX para o XX, houve a tentativa de conscientiza\u00e7\u00e3o da pr\u00f3pria popula\u00e7\u00e3o negra a respeito da import\u00e2ncia da educa\u00e7\u00e3o. Como boa parte da popula\u00e7\u00e3o negra n\u00e3o tinha acesso \u00e0 escola e tinha uma dificuldade da popula\u00e7\u00e3o pobre como um todo em acessar a escola como um direito, j\u00e1 que o acesso n\u00e3o estava democratizado, uma primeira demanda foi conscientizar as pr\u00f3prias fam\u00edlias negras da import\u00e2ncia da educa\u00e7\u00e3o e conscientizar os negros adultos a respeito da sua identidade racial.\u00a0 O movimento come\u00e7a olhando para si e para a pr\u00f3pria popula\u00e7\u00e3o.<\/p>\n

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Na d\u00e9cada de 1970, a escola passa a ser pensada como uma institui\u00e7\u00e3o importante para romper padr\u00f5es culturais cristalizados no Brasil que depreciam a perten\u00e7a racial negra e constroem uma s\u00e9rie de estere\u00f3tipos que t\u00eam n\u00e3o s\u00f3 efeitos simb\u00f3licos, mas tamb\u00e9m efeitos negativos nas possibilidades de pessoas negras acessarem direitos sociais, bens sociais, como mercados de trabalho, a m\u00eddia e uma s\u00e9rie de frentes. O movimento negro passa a denunciar que a popula\u00e7\u00e3o negra n\u00e3o tem acesso a essas posi\u00e7\u00f5es na sociedade, n\u00e3o por uma suposta incompet\u00eancia, falta de intelig\u00eancia ou tino para aquela atividade, mas porque existe racismo. A tese defendida foi que, se existe racismo e ele \u00e9 algo que permeia as institui\u00e7\u00f5es sociais, s\u00f3 uma institui\u00e7\u00e3o abrangente o suficiente do ponto de vista quantitativo poderia colaborar para desfazer estes estere\u00f3tipos: a escola.<\/p>\n

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Na d\u00e9cada de 1980 e 90, essa cren\u00e7a vai tomar uma grande propor\u00e7\u00e3o por conta da obrigatoriedade de frequ\u00eancia estabelecida para a educa\u00e7\u00e3o fundamental. A escola \u00e9 a \u00fanica institui\u00e7\u00e3o da vida p\u00fablica pela qual todo mundo \u00e9 obrigado a passar. Dada a abrang\u00eancia dessa institui\u00e7\u00e3o, h\u00e1 uma aposta na escola que vai se materializar institucionalmente nessas disputas, que primeiro s\u00e3o locais, pelo curr\u00edculo e pela legisla\u00e7\u00e3o que normatiza a educa\u00e7\u00e3o. Na d\u00e9cada de 1980, essa aposta se desloca para a esfera federal, no contexto da reda\u00e7\u00e3o da Constitui\u00e7\u00e3o Federal, e, posteriormente, na constru\u00e7\u00e3o dos planos nacionais de educa\u00e7\u00e3o. H\u00e1 nessa \u00e9poca um plano nacional que j\u00e1 propunha o ensino de hist\u00f3ria da \u00c1frica, por exemplo, como uma medida para mitigar o racismo no Brasil. Os movimentos participaram da constru\u00e7\u00e3o da Constitui\u00e7\u00e3o Federal de 1988, do plano nacional e da nova LDB de 1996. Nessas disputas fica clara que cren\u00e7a muito arraigada de democracia racial permeava os curr\u00edculos escolares, com a hist\u00f3ria das tr\u00eas ra\u00e7as. Para combater essa ideologia, houve uma s\u00e9rie de marchas nas ruas. Houve rea\u00e7\u00e3o. Na educa\u00e7\u00e3o um grupo se contrap\u00f4s ao ensino de hist\u00f3ria da \u00c1frica e a discuss\u00e3o do racismo porque n\u00e3o existiria racismo. Na justificativa da constituinte para n\u00e3o englobar a quest\u00e3o racial no cap\u00edtulo da educa\u00e7\u00e3o, percebe-se que os relatores acreditavam que este seria um particularismo e a constitui\u00e7\u00e3o \u00e9, por defini\u00e7\u00e3o, universalista. Assim, retira-se do cap\u00edtulo da educa\u00e7\u00e3o qualquer men\u00e7\u00e3o a povos africanos espec\u00edficos e se fala de matrizes culturais, de forma ampla e gen\u00e9rica.<\/p>\n

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A agenda vai sendo constitu\u00edda por pessoas que v\u00e3o ganhando a cena p\u00fablica e se especializando em \u00e1reas determinadas. Vemos isso muito claramente na constituinte, quando o movimento negro se subdivide para ocupar espa\u00e7os em diversos grupos, como sa\u00fade, educa\u00e7\u00e3o, para problematizar a quest\u00e3o da ra\u00e7a em todas as \u00e1reas. Da\u00ed nasce o embri\u00e3o do GT interministerial que se formaria na d\u00e9cada de 1990 no governo de Fernando Henrique Cardoso. Do GT se desdobraria uma s\u00e9rie de “medidas” – que ficaram, em boa parte, no papel – com dois focos mais importantes. Um foco era na redistribui\u00e7\u00e3o de recursos com reivindica\u00e7\u00f5es, por exemplo, por cotas de negro na m\u00eddia, em trabalhos com carteira assinada, incentivos \u00e0s empresas para contratarem pessoas negras. Houve tamb\u00e9m um primeiro aceno para a redistribui\u00e7\u00e3o de vagas no ensino superior, entendendo como uma possibilidade de ascens\u00e3o mais longeva para a popula\u00e7\u00e3o negra.<\/p>\n

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Outro foco era cultural. Houve uma forte reivindica\u00e7\u00e3o das matrizes negras por pol\u00edticas de cultura e acesso aos bens culturais e pol\u00edticas curriculares, incidindo mais no campo simb\u00f3lico. No Brasil, foi mais f\u00e1cil levar adiante as pol\u00edticas que se propuseram mexer no universo simb\u00f3lico, que n\u00e3o envolvem mexer em privil\u00e9gios arraigados h\u00e1 muito tempo. Essa dificuldade em se investir nas pol\u00edticas de redistribui\u00e7\u00e3o fica evidente quando vemos que a lei que exige o estudo de hist\u00f3ria da \u00c1frica \u00e9 de 2003, mas s\u00f3 em 2012 estabelece-se a lei de cotas. Para compreender esse per\u00edodo, recomendo a tese da Tatiane Cosentino Rodrigues<\/a>, na qual ela estudou o movimento negro na constituinte pela perspectiva da educa\u00e7\u00e3o. Em um texto dela<\/a> junto com a Nilma Lino Gomes, elas analisaram como o movimento negro incidiu sobre a constituinte, criando demandas que s\u00f3 foram atendidas legalmente em 2003. Naquele momento se fortaleceu uma agenda mais coletiva de trabalho e se estruturou uma demanda por modifica\u00e7\u00e3o curricular que reverbera depois em pol\u00edticas mais espec\u00edficas de reestrutura\u00e7\u00e3o do curr\u00edculo. No texto da lei 10.639 a ideia foi agregar uma parte da hist\u00f3ria que foi negada, n\u00e3o s\u00f3 \u00e0 popula\u00e7\u00e3o negra, mas a todo povo brasileiro. Ela \u00e9 ainda muito t\u00edmida sobre a import\u00e2ncia da escola na desconstru\u00e7\u00e3o do racismo, o que \u00e9 trazido posteriormente nas diretrizes<\/a>.<\/p>\n

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Portal IDeA<\/strong>: Algo muito rico em consequ\u00eancias na contextualiza\u00e7\u00e3o da lei \u00e9 o reconhecimento de que existem muitas hist\u00f3rias no Brasil e n\u00e3o uma hist\u00f3ria \u00fanica do povo brasileiro. Isso implica uma mudan\u00e7a no modo de reconhecimento da hist\u00f3ria.<\/p>\n

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Luciana Alves<\/strong>: Isso vem um pouco da ideia da constitui\u00e7\u00e3o cidad\u00e3, na qual grupos sociais com pautas n\u00e3o universais ou generalistas incidiram sobre a reconstru\u00e7\u00e3o do pa\u00eds p\u00f3s-ditadura e trouxeram uma s\u00e9rie de debates sobre a pouca coer\u00eancia de se contar a hist\u00f3ria a partir de uma s\u00f3 perspectiva. Ocorreu isso com movimento de mulheres, por exemplo, discutindo a hist\u00f3ria das mulheres no Brasil e no mundo, porque a hist\u00f3ria foi contada do ponto de vista masculino. Da mesma forma, a hist\u00f3ria do mundo era contada da perspectiva europeia de “descoberta” de outros povos. Essa disputa de narrativas sobre o que \u00e9 o Brasil e os cidad\u00e3os brasileiros se deve muito ao fortalecimento dos movimentos sociais no fim da ditadura para a democratiza\u00e7\u00e3o.<\/p>\n

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Portal IDeA: Isto tensiona um certo ideal de um povo brasileiro \u00fanico formado por um grande compromisso entre diferentes contribui\u00e7\u00f5es de negros, ind\u00edgenas e europeus. \u00c9 curioso que Darcy Ribeiro tenha sido um personagem central da LDB, j\u00e1 que a altera\u00e7\u00e3o feita pela 10.639 questiona a forma como ele contava a hist\u00f3ria<\/a>. Esses movimentos propuseram uma mudan\u00e7a de paradigma no modo de considerar a hist\u00f3ria do Brasil.<\/p>\n

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Luciana Alves: Esse movimento se confunde com hist\u00f3ria dos intelectuais e as disputas acad\u00eamicas em torno da hist\u00f3ria do Brasil. A tr\u00edade Darcy Ribeiro, S\u00e9rgio Buarque e Gilberto Freyre foi desbancada pela chamada Escola Paulista de Sociologia, pelas pesquisas feitas pelos pesquisadores da USP e da FESP-SP. Houve uma mudan\u00e7a de um olhar culturalista, que mirava os modos de sociabilidade entre negros e brancos e encontrava la\u00e7os de solidariedade que rivalizavam com regimes como o Apartheid ou as leis Jim Crow nos Estados Unidos. Ao mesmo tempo, n\u00e3o olhavam a distribui\u00e7\u00e3o desigual de recursos e, mais do que isso, consideravam as express\u00f5es do racismo cotidiano como estrangeiras e n\u00e3o como express\u00f5es cunhadas na rela\u00e7\u00e3o amb\u00edgua entre negros e brancos no Brasil. Havia racismo. Estas pessoas relataram v\u00e1rios epis\u00f3dios de racismo, mas n\u00e3o acreditavam que estes epis\u00f3dios eram suficientes para problematizar essa idealiza\u00e7\u00e3o de um Brasil no qual todo mundo tem um pouco de todo mundo, justificando, de alguma maneira, a exist\u00eancia de uma democracia racial.<\/p>\n

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Quando surgiu uma sociologia menos calcada nos princ\u00edpios da cultura e mais nos princ\u00edpios que organizam as rela\u00e7\u00f5es sociais, a coisa mudou de figura. O Florestan Fernandes fez isso, muito inspirado na escola norte-americana. De uma certa maneira ele incorporou uma tentativa de quantifica\u00e7\u00e3o do preconceito no Integra\u00e7\u00e3o do Negro na sociedade de classes<\/a>. Ele trouxe uma s\u00e9rie de dados sobre como o preconceito impacta as rela\u00e7\u00f5es sociais, v\u00e1rias perguntas que mostravam como essa harmonia n\u00e3o existia. Esses estudiosos formam uma nova\u00a0intelligentsia, formariam novos think tanks, dentre os quais se destaca o Cebrap, e contariam com o apoio da Funda\u00e7\u00e3o Ford no Brasil. Formou-se a\u00ed o presidente Fernando Henrique Cardoso. Houve um deslocamento resultante de tr\u00eas campos: o pol\u00edtico, o intelectual e o dos movimentos sociais. Estes autores estavam presentes nos movimentos sociais. O Gilberto Freyre e o Darcy Ribeiro estavam no Congresso do Negro, junto com o Abdias do Nascimento. O pr\u00f3prio Abdias tinha uma pauta cultural muito forte, com o Teatro Experimental do Negro. Quando surge uma nova gera\u00e7\u00e3o que vai peitar a ditatura, o que significa tamb\u00e9m peitar o mito da democracia racial, h\u00e1 uma mudan\u00e7a dos agentes no campo. N\u00e3o \u00e9 uma substitui\u00e7\u00e3o, pois eles convivem at\u00e9 hoje, mas uma preval\u00eancia de um determinado discurso que se preocupa mais para a equidade, para as desigualdades definidas nas rela\u00e7\u00f5es sociais, do que para as\u00a0reminisc\u00eancias\u00a0africanas na cultura brasileira.<\/p>\n

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Portal IDeA<\/strong>: Curiosamente, o PDT no Rio de Janeiro, onde estava o Darcy Ribeiro, foi um espa\u00e7o importante para candidatos negros que teriam uma import\u00e2ncia fundamental, elegendo Abdias do Nascimento, Ca\u00f3 (Carlos Alberto Oliveira dos Santos) e L\u00e9lia Gonzales. Em um dado momento, o PDT \u00e9 o partido que abriga as lideran\u00e7as negras, com at\u00e9 mais for\u00e7a do que o PT, onde estava Florestan Fenandes, e que se seria importante posteriormente. Estas tens\u00f5es e ambiguidades tamb\u00e9m est\u00e3o postas dentro dos pr\u00f3prios partidos.<\/p>\n

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Luciana Alves<\/strong>: Usando uma met\u00e1fora da\u00a0\u00c2ngela\u00a0Alonso, algumas figuras funcionam como dobradi\u00e7as entre um campo e outro. Arthur Ramos, por exemplo, foi orientando do Oliveira Viana, que acreditava no racismo cient\u00edfico. Depois, ele rompeu com essa perspectiva e foi para o culturalismo, era amigo do Freyre e do Darcy Ribeiro, escrevia sobre religi\u00f5es de matriz africana. Quando ele foi para a Unesco, dirigir uma linha de pesquisa, ele olhou para o Sul e Sudeste e fortaleceu a corrente intelectual que acabou derrubando toda a teoria dele mesmo. O que ocorreu no campo acad\u00eamico tamb\u00e9m aconteceu no campo pol\u00edtico, nos partidos e nos movimentos sociais. A hist\u00f3ria \u00e9 muito mais feita de continuidades do que de sucess\u00f5es. Essas figuras \u201cdobradi\u00e7as\u201d conseguem abrir caminho para novas propostas de interpreta\u00e7\u00e3o do Brasil.<\/p>\n

Portal IDeA<\/strong>: Nesse mosaico de personagens \u00e9 importante colocar os intelectuais da Bahia, do Centro de Estudos Afro-Orientais da UFBA, e os do Rio de Janeiro, do Centro de Estudos Afro-Asi\u00e1ticos da Universidade C\u00e2ndido Mendes. Desde os anos 1970, eles rediscutem inclusive as teses da escola paulista, marcando essa perman\u00eancia estrutural da desigualdade racial no Brasil. O Brasil \u00e9 estruturalmente racista e reproduz essa desigualdade na sua forma de funcionamento. Assim formou-se as matrizes de pensamento de pessoas que atuam no movimento negro, nos partidos pol\u00edticos e no estado.<\/p>\n

Luciana Alves<\/strong>: H\u00e1 um grupo no Rio de Janeiro que trabalhou com dados quantitativos, liderados por Carlos Hasenbalg, Nelson do Valle Silva e Elza Berqu\u00f3, que teve import\u00e2ncia imensa na articula\u00e7\u00e3o do movimento negro e das pautas, especialmente redistributivas. Eles evidenciaram algo que estava dito, mas que era compreendido atrav\u00e9s de uma perspectiva subjetiva. Quando um negro dizia que existia racismo, ele ouvia \u201cisso \u00e9 coisa da sua cabe\u00e7a”‘. Por mais que algu\u00e9m negue a exist\u00eancia de rela\u00e7\u00f5es conflituosas entre negros e brancos no Brasil, os dados fazem com que seja imposs\u00edvel dizer que n\u00e3o existe uma dist\u00e2ncia social entre aqueles que se classificam de um jeito ou de outro. O racismo se materializa em dados estruturais.<\/p>\n

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Portal IDeA<\/strong>: Vamos voltar aos marcos legais. H\u00e1 quatro marcos importantes: a lei 10.639 de 2003, as diretrizes curriculares de 2004<\/a>, a revis\u00e3o da lei em 2008<\/a> e um plano de implementa\u00e7\u00e3o de 2013<\/a>. Um detalhe: o fato de o plano de implementa\u00e7\u00e3o ter sido feito 10 anos depois n\u00e3o \u00e9 um dado in\u00f3cuo. Qual era o desafio que se colocava em 2003? Voc\u00ea poderia falar um pouco sobre esses marcos legais e o plano de implementa\u00e7\u00e3o?<\/p>\n

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Luciana Alves<\/strong>: Acho que \u00e9 importante tamb\u00e9m olhar para as lacunas das leis, como a Tatiane Cosentino Rodrigues fez: o que foi proposto e n\u00e3o foi implementado ou n\u00e3o foi aceito. Quando olhamos para essa linha da legisla\u00e7\u00e3o, para as disputas, para aquilo chegar da forma como chegou, n\u00f3s podemos at\u00e9 mesmo entender que o que a gente critica nos dispositivos legais foi geralmente um esfor\u00e7o herc\u00faleo e o poss\u00edvel naquele contexto de disputa. Do ponto de vista da ra\u00e7a, a legisla\u00e7\u00e3o mais importante \u00e9 a de 2003 e depois seus desdobramentos. O Armando Sim\u00f5es<\/a> faz uma discuss\u00e3o sobre a import\u00e2ncia das medidas universalistas para a quest\u00e3o social. O movimento negro tensionou pouco o acesso e a perman\u00eancia. Quando as estat\u00edsticas diziam “meninos negros evadem mais”, a gente lia isso como uma express\u00e3o do racismo, mas n\u00e3o conseguimos estabelecer uma rela\u00e7\u00e3o de causa e consequ\u00eancia. A lei 10.639 \u00e9 importante porque deixa\u00a0impl\u00edcita\u00a0que essa crian\u00e7a reprova ou evade porque ela n\u00e3o se enxerga na escola e no curr\u00edculo escolar, vivendo uma rela\u00e7\u00e3o muito dif\u00edcil com a escola. V\u00e1rias pesquisas mostram isso. As principais s\u00e3o da Eliane Cavalleiro<\/a> sobre educa\u00e7\u00e3o infantil e a da Rita Fazzi<\/a> sobre o ensino fundamental, que v\u00e3o documentar esses epis\u00f3dios de viol\u00eancia racial que s\u00e3o vivenciados na escola. Os grupos da Regina Paim e da Fulvia Rosemberg olharam o livro did\u00e1tico para caracterizar a materializa\u00e7\u00e3o do racismo no curr\u00edculo. Ent\u00e3o est\u00e1 montado o quebra-cabe\u00e7a. Olha-se pouco para os estudos quantitativos sobre a rela\u00e7\u00e3o da popula\u00e7\u00e3o negra na escola, mas j\u00e1 h\u00e1 justificativa para essa disparidade: o racismo, a aus\u00eancia de discuss\u00f5es no curr\u00edculo e a in\u00e9pcia dos atores da educa\u00e7\u00e3o para mitigar e, at\u00e9 mesmo, enxergar estes problemas.<\/p>\n

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Portal IDeA<\/strong>: As\u00a0diretrizes\u00a0de 2004 apontam explicitamente um problema na garantia do direito \u00e0 educa\u00e7\u00e3o de modo que pode ser expresso em resultados de matr\u00edcula, reprova\u00e7\u00e3o, abandono e \u201csucesso escolar\u201d. Esses resultados est\u00e3o situados no \u00e2mbito da repara\u00e7\u00e3o, enquanto a agenda propriamente curricular est\u00e1 situada no \u00e2mbito do reconhecimento e da valoriza\u00e7\u00e3o. Como essa agenda, posta desde a\u00a0constitui\u00e7\u00e3o\u00a0como universalizante, vem sendo conduzida e como tem sido articulada com a quest\u00e3o do reconhecimento?<\/p>\n

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Luciana Alves: Na minha opini\u00e3o, o movimento negro falha em incorporar a agenda da qualidade da educa\u00e7\u00e3o, entendida aqui como aprendizagem. Nos dados, h\u00e1 uma diferen\u00e7a no desempenho entre negros e pardos que, por vezes, \u00e9 percebida como amea\u00e7a \u00e0 forma como o movimento construiu a categoria negro como sendo a maioria da popula\u00e7\u00e3o brasileira, justificando assim que a pol\u00edtica n\u00e3o seja para uma minoria quantitativa. Temos um imbr\u00f3glio para resolver nessa rela\u00e7\u00e3o entre a pesquisa e\u00a0o movimento social. Quando o dado aponta que, do ponto de vista da aprendizagem, a crian\u00e7a parda, especialmente a menina, n\u00e3o \u00e9 o grupo mais desfavorecido, a pesquisa tensiona uma agenda pol\u00edtica que demorou d\u00e9cadas para ser constru\u00edda. Para fazer pol\u00edtica focada, \u00e9 preciso definir o sujeito. O movimento negro vai em um sentido inverso aos movimentos que usam o conceito de g\u00eanero, que lutam por n\u00e3o ter binarismo. Na quest\u00e3o racial, a gente luta para haver o binarismo, para identificar a popula\u00e7\u00e3o negra a partir da jun\u00e7\u00e3o de uma gama de cores e reduzi-las para duas categorias e, a partir disso, dizer: este \u00e9 o grupo negro. Os dados de aprendizagem problematizam essa constru\u00e7\u00e3o.<\/p>\n

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Portal IDeA<\/strong>: Isso n\u00e3o quer dizer que a popula\u00e7\u00e3o parda n\u00e3o viva, na escola, experi\u00eancias muito duras de\u00a0discrimina\u00e7\u00e3o\u00a0e de n\u00e3o\u00a0reconhecimento\u00a0da sua negritude na escola.\u00a0Provavelmente\u00a0a diminui\u00e7\u00e3o das diferen\u00e7as de aprendizagem e de conclus\u00e3o sejam feitas com o custo muito grande de um outro efeito do racismo que \u00e9 o n\u00e3o reconhecimento, a imposi\u00e7\u00e3o da l\u00f3gica de branquitude.<\/p>\n

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Luciana Alves<\/strong>: Um tema que temos investigado pouco do ponto de vista sociol\u00f3gico, mas que \u00e9 trazido, de modo controverso, pela milit\u00e2ncia do colorismo \u00e9 que, de fato, voc\u00ea ser retinto ou mais claro, ter o cabelo mais liso ou mais crespo, d\u00e1 condi\u00e7\u00f5es de\u00a0intera\u00e7\u00e3o\u00a0muito diferentes com os pares. \u00c9 muito diferente a rela\u00e7\u00e3o que uma menina negra com o pr\u00f3prio cabelo quando ele \u00e9 cacheado do que quando \u00e9 crespo. Juntou-se os pretos e pardos por uma escolha estat\u00edstica. L\u00f3gico que n\u00e3o tem neutralidade nessa escolha, pesquisadores como o Hasenbalg e o Nelson do Vale Silva eram pr\u00f3ximos do movimento negro em alguma medida. A qualidade de vida, o acesso de bens e servi\u00e7os era muito semelhante para um grupo e outro, ent\u00e3o juntou-se essas categorias para criar a categoria negro. Nas rela\u00e7\u00f5es de sociabilidade, no entanto, eu tenho duas categorias.<\/p>\n

Portal IDeA<\/strong>: A menor desigualdade entre pardos e brancos na escola n\u00e3o quer dizer que fora da escola essa desigualdade seja mantida. Sabemos bem que as vantagens escolares das mulheres n\u00e3o se traduzem em vantagem e sequer em igualdade no mercado de trabalho. Se a gradiente de cor funciona na escola gerando essas experi\u00eancias menos conflitivas entre pardos e brancos, em outras esferas sociais isso n\u00e3o vai necessariamente se reproduzir e as pessoas pardas poder\u00e3o viver experi\u00eancias de discrimina\u00e7\u00e3o bastante duras.<\/p>\n

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Luciana Alves<\/strong>: Se a gente desloca o objeto de an\u00e1lise para a sexualidade e as escolhas afetivas, \u00e9 poss\u00edvel realmente observar uma cis\u00e3o entre pretas e pardas. Os indicadores de casamento e relacionamentos afetivo-sexuais, por exemplo, evidenciam que mulheres pretas se casam em menor propor\u00e7\u00e3o comparativamente \u00e1s pardas, bem como s\u00e3o maioria entre aquelas que experimentam o que tem sido chamado na literatura de \u201csolid\u00e3o da mulher negra\u201d. Obviamente, a situa\u00e7\u00e3o das pardas n\u00e3o se equipara \u00e0s mulheres brancas, pois muitas vezes os estere\u00f3tipos de uma sexualidade exacerbada pesam mais sobre as primeiras que sobre estas. Um bom debate nesse sentido \u00e9 realizado pela professora Laura Moutinho no livro \u201cRaz\u00e3o, cor e desejo\u201d e nos estudos da Elza Berqu\u00f3 sobre ra\u00e7a e matrim\u00f4nio. No entanto, quando olhamos qualquer dado de distribui\u00e7\u00e3o de bens e direitos, a jun\u00e7\u00e3o de pretos e pardos na categoria \u201cnegro\u201d \u00e9 incontest\u00e1vel. A desigualdade racial \u00e9 entre brancos e negros (pretos e pardos), isto est\u00e1 posto. \u00c9 olhar para como a sociedade est\u00e1 estruturada e entender o problema.<\/p>\n

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Outra quest\u00e3o \u00e9 que o Brasil e, especificamente o movimento negro, entendeu mal o que o Bourdieu disse. O fato de uma popula\u00e7\u00e3o ter sucesso escolar, por exemplo as meninas pardas, e isso n\u00e3o se reverter necessariamente em sucesso socioecon\u00f4mico n\u00e3o \u00e9 enfraquecimento de uma luta. A luta na escola \u00e9 uma, enquanto a luta em outros campos vai se dar sob outros termos.<\/p>\n

Portal IDeA<\/strong>: A lei 10.639 mexeu no aparato legal, construiu diretrizes e pol\u00edticas de implementa\u00e7\u00e3o, mas a transforma\u00e7\u00e3o da escola em si \u00e9 uma outra disputa. Qual o balan\u00e7o que se faz hoje em dia, na literatura e no movimento negro, das transforma\u00e7\u00f5es que foram produzidas na escola, ao longo desses 20 anos?<\/p>\n

Luciana Alves: O bala\u00e7o n\u00e3o \u00e9\u00a0positivo. Em uma pesquisa do CEERT<\/a>, analisamos mais de 300 teses e disserta\u00e7\u00f5es sobre o tema. Parte delas pensa a escola e seu papel para a desconstru\u00e7\u00e3o do racismo, parte dela pensa a escola como reprodutora do racismo. Quando a leitura \u00e9 positiva, os estudos n\u00e3o s\u00e3o conclusivos. No geral, s\u00e3o pesquisas que avaliam resultados de atividades propostas e aplicadas pelos pr\u00f3prios pesquisadores que, depois, dizem que as propostas deram certo e tiveram resultados positivos. Do ponto de vista das normativas locais, isto \u00e9, do projeto pol\u00edtico pedag\u00f3gico das escolas e dos seus planos de ensino, as pesquisas encontraram uma discrep\u00e2ncia entre o que \u00e9 proposto nos documentos e o que \u00e9 de fato proporcionado \u00e0s crian\u00e7as. O fato de existir uma legisla\u00e7\u00e3o faz com que as escolas a mencionem nos seus documentos oficiais. Isto j\u00e1 \u00e9 um passo porque mostra que, ao menos, elas conhecem a legisla\u00e7\u00e3o. Mas o passo final, a proposta de atividades, n\u00e3o tem sido dado a contento.<\/p>\n

Portal IDeA<\/strong>: Ent\u00e3o, uma primeira conclus\u00e3o \u00e9 que essas prescri\u00e7\u00f5es chegam na escola, mas n\u00e3o chegam ao curr\u00edculo que se realiza, ao curr\u00edculo em a\u00e7\u00e3o, \u00e0s atividades oferecidas aos alunos.<\/p>\n

Luciana Alves<\/strong>: Exato. Outro ponto sobre esses estudos \u00e9 que, na \u00e1rea de educa\u00e7\u00e3o, normalmente h\u00e1 muitas pesquisas de estudos de caso e n\u00e3o conseguimos construir um mapa mais geral do que se passa nas redes. Uma rede pode ter diretrizes muito boas, mas uma escola pode a implementar de um jeito e outra, de outro. Faltam estudos mais amplos que nos permitam tra\u00e7ar, de fato, um retrato geral. H\u00e1 duas tentativas nesse sentido. Uma \u00e9 o texto Nilma Lino Gomes<\/a> que aborda uma dimens\u00e3o do\u00a0PAR[1]<\/sup><\/a>\u00a0sobre ra\u00e7a e v\u00ea como as escolas e mun\u00edcipios est\u00e3o respondendo, para ver se a lei est\u00e1 sendo implementada. Outra \u00e9 uma pesquisa recente do Instituto Alana<\/a>, feita no Brasil inteiro, com question\u00e1rios e entrevistas em profundidade e que procura caracterizar a implementa\u00e7\u00e3o da lei 10639 no pa\u00eds. A literatura acad\u00eamica aponta, como padr\u00e3o, ou a aus\u00eancia de implementa\u00e7\u00e3o ou a implementa\u00e7\u00e3o insuficiente da lei nas escolas pesquisadas.<\/p>\n

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Tenta-se tamb\u00e9m achar as causas do problema e, normalmente, o que se aponta \u00e9 a pol\u00edtica de forma\u00e7\u00e3o de professores. Essa conclus\u00e3o se baseia em question\u00e1rios que perguntam aos professores se eles estudaram o tema ra\u00e7a na gradua\u00e7\u00e3o e depois dela. A maioria diz que n\u00e3o. Ent\u00e3o, o resultado sugere que o gargalo est\u00e1 na forma\u00e7\u00e3o de professores. Mas essa \u00e9 uma hip\u00f3tese que eu problematizo. Se fosse isso, a pessoa com acesso \u00e0 informa\u00e7\u00e3o, por consequ\u00eancia l\u00f3gica, estaria implementando a lei satisfatoriamente, mas n\u00e3o \u00e9 isso o que vejo na minha pesquisa.<\/p>\n

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Portal IDeA<\/strong>: A lei cita de tr\u00eas disciplinas que devem trabalhar preferencialmente com a educa\u00e7\u00e3o para as rela\u00e7\u00f5es \u00e9tnico-raciais: hist\u00f3ria, arte e literatura. Uma impress\u00e3o que se tem \u00e9 que, nesses 20 anos, o mercado editorial foi absolutamente transformado, com um enorme crescimento na produ\u00e7\u00e3o e tradu\u00e7\u00e3o de obras que tematizam a quest\u00e3o racial, especialmente no que se refere e essas disciplinas. N\u00e3o seria essa transforma\u00e7\u00e3o editorial um efeito positivo da lei?<\/p>\n

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Luciana Alves<\/strong>: A pesquisa bibliogr\u00e1fica apontou que, nas escolas que implementam a lei, a maioria esmagadora o faz pela literatura, porque \u00e9 a disciplina que disponibiliza mais materiais para o professor e a professora utilizarem. N\u00e3o sabemos como eles utilizam, mas vimos muitos projetos na \u00e1rea de literatura ou em corpo e movimento, o que isso diz muito sobre como a lei foi interpretada pelos professores, diretores e coordenadores pedag\u00f3gicos. O fato da lei e as diretrizes enfatizarem as rela\u00e7\u00f5es n\u00e3o \u00e9 \u00e0 toa, pois \u00e9 onde est\u00e1 a grande quest\u00e3o. S\u00f3 que na transposi\u00e7\u00e3o para a aula, o professor vai trabalhar com eventos pontuais, escolher um livro espec\u00edfico para um projeto espec\u00edfico e n\u00e3o vai olhar, por exemplo, para a distribui\u00e7\u00e3o das notas entre estudantes negros e brancos e nem para o que se passa no recreio. Algo positivo das diretrizes \u00e9 mostrar que a escola ensina em todos os aspectos e momentos, para al\u00e9m do que o professor fala em sala de aula. Mas a \u00eanfase nas rela\u00e7\u00f5es foge \u00e0 percep\u00e7\u00e3o da maioria dos educadores, que transformam eventos em projetos did\u00e1ticos. O desafio \u00e9 colocar as rela\u00e7\u00f5es \u00e9tnico-raciais no cerne da educa\u00e7\u00e3o.<\/p>\n

Portal IDeA<\/strong>: O que \u00e9 tratar as rela\u00e7\u00f5es \u00e9tnico-raciais como o objetivo da educa\u00e7\u00e3o?<\/p>\n

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Luciana Alves<\/strong>: Recentemente escrevi um cap\u00edtulo de livro sobre isso, ainda n\u00e3o publicado. A partir da leitura das diretrizes e de um conjunto de pesquisas sobre o tema, proponho 3 eixos. Um primeiro se refere a rela\u00e7\u00f5es que definem os padr\u00f5es de sociabilidade. \u00c9 onde vai se ver um menino xingar o outro, a menina negra n\u00e3o conseguir namorico na escola. Enfim, trata das rela\u00e7\u00f5es que s\u00e3o mediadas pelos estere\u00f3tipos ligados a negros e brancos e que comungam muito do que outras\u00a0institui\u00e7\u00f5es\u00a0ensinam \u00e0s crian\u00e7as sobre como se relacionar racialmente. Esse eixo \u00e9 muito enfatizado nas diretrizes de 2004. A quest\u00e3o do reconhecimento e da valoriza\u00e7\u00e3o entra especialmente nesse eixo, mas tamb\u00e9m no segundo. O segundo eixo, tamb\u00e9m muito em voga, \u00e9 o curricular. O curr\u00edculo precisa ser decolonial, mas n\u00e3o sei se as pessoas sabem fazer e operar um curr\u00edculo decolonial. Eu acho muito dif\u00edcil, porque a gente aprendeu atrav\u00e9s de uma refer\u00eancia pr\u00e1tica e precisa a partir da teoria mudar essa pr\u00e1tica. O terceiro e \u00faltimo eixo \u00e9 da rela\u00e7\u00e3o das crian\u00e7as com o objeto do conhecimento e se refere \u00e0 quest\u00e3o das desigualdades de aprendizagem entre as crian\u00e7as negras e brancas.<\/p>\n

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Quando falo em “educar para as rela\u00e7\u00f5es\u00a0\u00e9tnico-raciais” tem muita\u00a0gente\u00a0que entende como “vamos fazer regras de etiqueta para as rela\u00e7\u00f5es\u00a0\u00e9tnico-raciais. O que eu n\u00e3o posso dizer? Eu posso dizer negro ou preto? Eu posso colar Bombril no cartaz para representar o cabelo de uma menina negra?”. S\u00e3o regras de etiqueta que at\u00e9 podem favorecer a conviv\u00eancia da crian\u00e7a negra naquele ambiente, mas que est\u00e3o muito longe de produzir a escola que queremos e de que precisamos. Quando eu olho para o curr\u00edculo, noto que inserir a hist\u00f3ria do povo do Congo no curr\u00edculo n\u00e3o \u00e9 suficiente. \u00c9 preciso uma reavalia\u00e7\u00e3o daquele curr\u00edculo para entender as diferentes perspectivas de constru\u00e7\u00e3o do conhecimento, eleger outros centros e trazer isso para o debate. \u00c9 uma forma de reparar uma hist\u00f3ria que n\u00e3o foi contada, de valorizar os povos, reconhecer suas particularidades. A gente j\u00e1 elegeu no passado a Europa como centro de produ\u00e7\u00e3o do conhecimento, mas as pessoas se esquecem que o curr\u00edculo \u00e9 uma escolha.<\/p>\n

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O \u00faltimo eixo, das desigualdades de aprendizagem talvez seja aquele em que menos se prestou aten\u00e7\u00e3o. Precisamos ver se o menino est\u00e1 aprendendo ou n\u00e3o o que deveria aprender porque ele tem o direito a aprender. Uma crian\u00e7a que aprendeu, se reconheceu nos livros did\u00e1ticos e foi respeitada na sua subjetividade pelos colegas, olha, se voc\u00ea a xingar de macaco, ela vai ignorar e seguir adiante. Quem j\u00e1 est\u00e1 formado no movimento negro sente isso. A gente pode ficar bravo, mas a gente sabe que n\u00e3o \u00e9 aquilo. Quando as pessoas falam “vou trabalhar a autoestima das crian\u00e7as negras”, entendem que \u00e9 fazer a crian\u00e7a se sentir bonita. N\u00e3o! \u00c9 a crian\u00e7a aprender. N\u00e3o tem nada melhor para a autoestima do que ser inteligente, saber operar com os saberes socialmente valorizados. Quando a gente fala de educa\u00e7\u00e3o para as rela\u00e7\u00f5es \u00e9tnico-raciais, falamos desses tr\u00eas grandes eixos que podem, de fato, levar \u00e0 implementa\u00e7\u00e3o da lei.<\/p>\n

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Portal IDeA<\/strong>: Voc\u00ea falou de v\u00e1rios desafios. Um de compreens\u00e3o, que seria ter uma an\u00e1lise mais sistem\u00e1tica. Outro program\u00e1tico, que seria uma reatualiza\u00e7\u00e3o das diretrizes por meio desses tr\u00eas eixos que caracterizam a educa\u00e7\u00e3o para as rela\u00e7\u00f5es \u00e9tnico-raciais. O que voc\u00ea v\u00ea como o maior desafio de implementa\u00e7\u00e3o?<\/p>\n

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Luciana Alves<\/strong>: O primeiro desafio \u00e9 uma barreira subjetiva, que o movimento negro e a literatura internacional t\u00eam apontado, que diz respeito ao modo como o tema ra\u00e7a foi desqualificado na viv\u00eancia dos brasileiros. Para negros e brancos, mas muito mais para brancos.<\/p>\n

Portal IDeA<\/strong>: Ou seja, ra\u00e7a n\u00e3o \u00e9 uma condi\u00e7\u00e3o do negro, mas uma estrutura relacional. Tem um desafio cultural, que \u00e9 implicar a todos nessa quest\u00e3o.<\/p>\n

Luciana Alves<\/strong>: H\u00e1 evid\u00eancias de que os professores e professoras que implementam a lei s\u00e3o majoritariamente negros e negras porque a lei dialoga com o subjetivo, com as dores vividas.\u00a0Por sua vez, o fato de muitos brancos estarem presos na fase da nega\u00e7\u00e3o ou da culpa dificulta que de fato entendam que isso tamb\u00e9m \u00e9 problema deles. Eu aposto muito no debate sobre branquitude porque traz os brancos para entender que eles est\u00e3o nessa rela\u00e7\u00e3o e que o racismo n\u00e3o \u00e9 um problema dos pretos. Eu acho que h\u00e1 uma quest\u00e3o relacional e subjetiva ao mesmo tempo.<\/p>\n

O segundo desafio para a implementa\u00e7\u00e3o, mais complicado, \u00e9 o da forma\u00e7\u00e3o de professores. \u00c9 preciso investir em aspectos te\u00f3ricos, porque sem boa teoria nenhuma boa pr\u00e1tica se sustenta, mas aquele sujeito que est\u00e1 na forma\u00e7\u00e3o precisa vislumbrar como fazer, que pr\u00e1ticas vai propor. \u00d3bvio que n\u00e3o se trata de um tecnicismo, mas quando a forma\u00e7\u00e3o n\u00e3o aborda aspectos pr\u00e1ticos, ela dificulta a transposi\u00e7\u00e3o do que foi discutido como teoria para as pr\u00e1ticas que v\u00e3o definir o curr\u00edculo efetivamente realizado. Eu estou olhando para o conjunto de forma\u00e7\u00f5es ofertadas pela prefeitura de S\u00e3o Paulo para ver o que se faz quando o tema \u00e9 rela\u00e7\u00f5es\u00a0\u00e9tnico-raciais, o que est\u00e1 sendo discutido. At\u00e9 agora, o que eu vi foram discuss\u00f5es sobre o que \u00e9 racismo que tamb\u00e9m s\u00e3o importantes, porque se o professor n\u00e3o est\u00e1 sensibilizado ele n\u00e3o vai fazer. S\u00f3 que h\u00e1 o depois, a implementa\u00e7\u00e3o na sala de aula.<\/p>\n

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Portal IDeA<\/strong>: Uma pergunta que, confesso \u00e9 um tanto ret\u00f3rica: conseguiremos ter esse repert\u00f3rio de pr\u00e1ticas sem explorar o potencial criativo dos professores e sem que as pol\u00edticas incorporem uma dimens\u00e3o \u201cde baixo para cima\u201d?<\/p>\n

Luciana Alves<\/strong>:\u00a0Ao falar de pr\u00e1tica, falamos de habilidades, conhecimentos e saberes que o professor tem para trazer ao seu grupo. Algo realmente a ver com as rela\u00e7\u00f5es raciais para al\u00e9m da proposta de um desenho, da discuss\u00e3o sobre o protagonista de uma narrativa liter\u00e1ria. Sobre o modelo de forma\u00e7\u00e3o, eu tenho lido bastante sobre os modelos de mentoria. N\u00e3o adianta um expert dizer “a habilidade que voc\u00ea tem que construir \u00e9 essa”, se n\u00e3o tem em algum momento di\u00e1logo, escuta e\u00a0formula\u00e7\u00e3o\u00a0junto com aquele grupo sobre quais s\u00e3o as compet\u00eancias e habilidades necess\u00e1rias para aquele contexto para a implementa\u00e7\u00e3o da educa\u00e7\u00e3o para as rela\u00e7\u00f5es \u00e9tnico-raciais. Em termos de pol\u00edtica p\u00fablica, isso \u00e9 muito caro e n\u00e3o sei se \u00e9 fact\u00edvel num pa\u00eds como o nosso. Quando eu trabalhava no CEERT, fizemos uma s\u00e9rie de conversas<\/a> \u00a0com cerca de 30 professores e desenhamos com eles e elas esse conjunto de habilidades. Algumas habilidades, como identificar um estere\u00f3tipo racial numa imagem, s\u00e3o t\u00e3o b\u00e1sicas que poderiam fazer parte de prescri\u00e7\u00f5es, mas outras contextuais, exigem an\u00e1lise de situa\u00e7\u00f5es concretas e a forma\u00e7\u00e3o por mentoria daria conta melhor de assegur\u00e1-las.<\/p>\n

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Portal IDeA<\/strong>: Outra aposta de pol\u00edtica p\u00fablica seriam as inst\u00e2ncias intermedi\u00e1rias para uma troca mais relacionada com o territ\u00f3rio.<\/p>\n

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Luciana Alves<\/strong>: Eu acho que tem espa\u00e7o para isso. Eu estou analisando as forma\u00e7\u00f5es e algumas apostam nisso. Na \u00e9poca da pandemia, 2020 e 2021, a prefeitura de S\u00e3o Paulo abriu inscri\u00e7\u00f5es para quem tivesse interesse em dar forma\u00e7\u00e3o. Foram 73 ligadas a ra\u00e7a e, dessas, muitas s\u00e3o territoriais, voltadas a professores de uma dada diretoria de ensino. Assim, d\u00e1 para olhar o que aqueles sujeitos propuseram, o que foi avaliado pela equipe da rede, o que foi ofertado pelos professores e depreender dali os conhecimentos que essa rede valoriza que seus professores construam. N\u00e3o \u00e9 a forma\u00e7\u00e3o mais contextualizada poss\u00edvel, mas tamb\u00e9m n\u00e3o \u00e9 de uma escola s\u00f3.<\/p>\n

Portal IDeA<\/strong>: Ainda sobre a forma\u00e7\u00e3o de professores, sobretudo nas institui\u00e7\u00f5es p\u00fablicas. As universidades e os cursos de pedagogia se abriram muito mais \u00e0 quest\u00e3o racial depois do fortalecimento dos movimentos negros nas universidades e, sobretudo, depois das pol\u00edticas de a\u00e7\u00e3o afirmativa. O corpo discente delas, sobretudo, \u00e9 mais diversificado. N\u00e3o h\u00e1 consequ\u00eancias dessa transforma\u00e7\u00e3o?\u00a0 H\u00e1 mais estudantes negros em cursos de forma\u00e7\u00e3o de professores de institui\u00e7\u00f5es nas quais as rela\u00e7\u00f5es raciais s\u00e3o mais tematizadas.<\/p>\n

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Luciana Alves<\/strong>: A pessoa precisa saber que \u00e9 negra e isso n\u00e3o \u00e9 f\u00e1cil. Uma coisa \u00e9 eu me descrever fisicamente, mas o que isso implica politicamente? Nas universidades p\u00fablicas isso \u00e9 muito bem trabalhado, principalmente pelo engajamento nos coletivos de estudantes. Mas nas institui\u00e7\u00f5es privadas, a quest\u00e3o racial sequer \u00e9 tocada. Nas teses e disserta\u00e7\u00f5es analisadas, os\u00a0trabalhos\u00a0de forma\u00e7\u00e3o que foram bem avaliados s\u00e3o aqueles que mobilizam a vida dos professores. Eles falam “eu me descobri negra nessa forma\u00e7\u00e3o”, “chorei muito”, “percebi o tanto que eu sofri racismo”. Esse sujeito negro se constituindo como tal para que ele possa incidir positivamente na realidade. Se n\u00e3o, ser negro \u00e9 s\u00f3 uma caracter\u00edstica f\u00edsica.<\/p>\n

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Como citar<\/p>\n

ALVES, Luciana. Entrevista Ra\u00e7a e Escola. [Entrevista concedida a] Mauricio Ernica e Viviane Ramos. In RAMOS, Viviane; ERNICA, Mauricio Newsletter do Portal IDeA: Desigualdade racial e os 20 anos da lei 10.639<\/strong>. Portal IDeA, n.12, mar\u00e7o.2023.<\/p>\n

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[1]<\/sup><\/a> O PAR \u00e9 o Plano de A\u00e7\u00f5es Articuladas \u00e9 um documento cuja finalidade \u00e9 subsidiar a avalia\u00e7\u00e3o diagn\u00f3stica das redes de ensino que deve ser elaborado no \u00e2mbito dos Estados e Munic\u00edpios que aderiram ao Plano de Metas e Compromissos Todos pela Educa\u00e7\u00e3o, programa estrat\u00e9gico do Plano de Desenvolvimento da Educa\u00e7\u00e3o (PDE) do Minist\u00e9rio da Educa\u00e7\u00e3o. Para maiores informa\u00e7\u00f5es clique <\/a>aqui<\/a>.<\/p>\n

 <\/p>\n","protected":false},"excerpt":{"rendered":"Entrevista com a pesquisadora Luciana Alves sobre o hist\u00f3rico da lei 10.639, seu contexto, desmembramentos, consequ\u00eancias e obst\u00e1culos, apresentando tamb\u00e9m um panorama das pesquisas sobre o tema e propostas de pol\u00edticas p\u00fablicas.","protected":false},"author":1,"featured_media":0,"comment_status":"open","ping_status":"open","sticky":false,"template":"","format":"standard","meta":[],"categories":[7],"tags":[43,29,37,20],"acf":[],"_links":{"self":[{"href":"https:\/\/portalidea.org.br\/wp-json\/wp\/v2\/posts\/488"}],"collection":[{"href":"https:\/\/portalidea.org.br\/wp-json\/wp\/v2\/posts"}],"about":[{"href":"https:\/\/portalidea.org.br\/wp-json\/wp\/v2\/types\/post"}],"author":[{"embeddable":true,"href":"https:\/\/portalidea.org.br\/wp-json\/wp\/v2\/users\/1"}],"replies":[{"embeddable":true,"href":"https:\/\/portalidea.org.br\/wp-json\/wp\/v2\/comments?post=488"}],"version-history":[{"count":1,"href":"https:\/\/portalidea.org.br\/wp-json\/wp\/v2\/posts\/488\/revisions"}],"predecessor-version":[{"id":490,"href":"https:\/\/portalidea.org.br\/wp-json\/wp\/v2\/posts\/488\/revisions\/490"}],"wp:attachment":[{"href":"https:\/\/portalidea.org.br\/wp-json\/wp\/v2\/media?parent=488"}],"wp:term":[{"taxonomy":"category","embeddable":true,"href":"https:\/\/portalidea.org.br\/wp-json\/wp\/v2\/categories?post=488"},{"taxonomy":"post_tag","embeddable":true,"href":"https:\/\/portalidea.org.br\/wp-json\/wp\/v2\/tags?post=488"}],"curies":[{"name":"wp","href":"https:\/\/api.w.org\/{rel}","templated":true}]}}