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LITERATURA AFRICANA<\/p>\n

Entrevista com Issaka Bano<\/h1>\n

23\/01\/2023<\/p>\n

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Issaka Bano nasceu no N\u00edger, onde realizou sua educa\u00e7\u00e3o b\u00e1sica. Em 2007, ele se mudou para o Brasil. Ap\u00f3s concluir uma primeira forma\u00e7\u00e3o em programa\u00e7\u00e3o, Issaka graduou-se em Rela\u00e7\u00f5es Internacionais. Durante o curso, ele trabalhou no escrit\u00f3rio do Itamaraty em S\u00e3o Paulo. Esta experi\u00eancia o levou a pesquisar a escolariza\u00e7\u00e3o de refugiados africanos de l\u00edngua francesa em S\u00e3o Paulo, durante seu mestrado<\/a><\/u> na Faculdade de Educa\u00e7\u00e3o da Unicamp. Seu interesse por literatura o levou a se aprofundar na literatura africana, sobretudo a produzida em l\u00edngua francesa, dando origem \u00e0 pesquisa que realiza nesse momento no curso de doutorado em Sociologia no Instituto de Filosofia e Ci\u00eancias Humanas da Unicamp.<\/p>\n

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Desde de 2019, Issaka participa das atividades do Coletivo Ra\u00edzes<\/a>. S\u00e3o dedicado \u00e0 promo\u00e7\u00e3o, ao incentivo e \u00e0 divulga\u00e7\u00e3o da literatura africana, grupo que ele coordena atualmente. Entre as atividades realizadas pelo Coletivo Ra\u00edzes, est\u00e1 a organiza\u00e7\u00e3o e publica\u00e7\u00e3o de dois livros \u201c\u00c1frica(s) na(s) literatura(s): revisitando narrativas que tecem complexos culturais\u201d e \u201cAs \u00c1fricas dentro de mim: colet\u00e2nea de poesias e contos\u201d, ambos pela editora Alupolo<\/a>. Em rela\u00e7\u00e3o \u00e0 cole\u00e7\u00e3o \u00c1frica(s) a(s) literatura(s), h\u00e1 a previs\u00e3o para a publica\u00e7\u00e3o de mais 6 livros, o terceiro pela Editora Kapulana<\/a>, com an\u00e1lise de romances africanos, entrevistas com escritores africanos de l\u00edngua portuguesa, francesa e inglesa, al\u00e9m de discuss\u00e3o te\u00f3rica sobre o tema.<\/p>\n

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A equipe do Portal IDeA conversou com Issaka Bano abordando a rela\u00e7\u00e3o existente entre oralidade, escrita e mem\u00f3ria na literatura africana, sua forma\u00e7\u00e3o e principais autores. Por fim, discute-se a recep\u00e7\u00e3o da literatura africana no Brasil. Participaram da conversa, pelo Portal IDeA, Mauricio Ernica e Viviane Ramos.<\/p>\n

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Oralidade, escrita e mem\u00f3ria<\/h3>\n

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Portal IDeA<\/strong>: Eu gostaria de come\u00e7ar essa conversa ouvindo a respeito da escrita e da oralidade na \u00c1frica. Eu gostaria que voc\u00ea falasse um pouco sobre a import\u00e2ncia da oralidade, da narrativa oral e de sua rela\u00e7\u00e3o com a literatura. Eu queria tamb\u00e9m que voc\u00ea comentasse sobre a presen\u00e7a da escrita na \u00c1frica, que \u00e9 muito antiga.<\/p>\n

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Issaka Bano<\/strong>: No primeiro volume da cole\u00e7\u00e3o Hist\u00f3ria Geral da \u00c1frica<\/a>, os editores falam das metodologias usadas para escrever a cole\u00e7\u00e3o inteira. Tinha-se a ideia de reunir o m\u00e1ximo de informa\u00e7\u00f5es poss\u00edveis e necess\u00e1rias para escrever a hist\u00f3ria da \u00c1frica. Quais eram as fontes usadas? As escritas, a arqueologia, a tradi\u00e7\u00e3o oral, a lingu\u00edstica, a antropologia e a etnologia foram as principais fontes. No que diz respeito \u00e0s escritas, no plural, tinha o \u00e1rabe, porque parte do continente africano teve coloniza\u00e7\u00e3o \u00e1rabe antes da coloniza\u00e7\u00e3o europeia, e por isso a escrita em \u00e1rabe \u00e9 muito presente. Antes do \u00e1rabe havia outras escritas. Um dos autores que fala bastante das l\u00ednguas escritas que existiam antes da coloniza\u00e7\u00e3o \u00e9 o Cheikh Anta Diop<\/a>, sua tese de doutorado, inicialmente rejeitada pela banca, , al\u00e9m de defender que o Egito antigo havia sido uma cultura negra, mostra a exist\u00eancia de outras l\u00edngua e suas ramifica\u00e7\u00f5es na regi\u00e3o. Ele produziu uma obra extensa<\/a> em que se dedica tanto \u00e0 escrita do Egito antigo quanto com o wolof, uma l\u00edngua no Senegal. A escrita sempre existiu na \u00c1frica, mas a impress\u00e3o que os historiadores t\u00eam ou tiveram, um deles o Joseph Ki. Zerbo, \u00e9 que as coloniza\u00e7\u00f5es europeias e \u00e1rabes destru\u00edram, num dado per\u00edodo, as escritas existentes. Ki. Zerbo, no primeiro cap\u00edtulo do volume I da Cole\u00e7\u00e3o Hist\u00f3ria Geral da \u00c1frica, menciona que essas fontes, as escritas, s\u00e3o mal distribu\u00eddas no tempo e no espa\u00e7o. Os s\u00e9culos mais \u201cobscuros\u201d da hist\u00f3ria africana s\u00e3o justamente aqueles que n\u00e3o se beneficiam do saber claro e preciso que emana dos testemunhos escritos, por exemplo, os s\u00e9culos imediatamente anteriores e posteriores ao nascimento de Cristo. Quando o colonizador chega, o \u00e1rabe ou o europeu, ele imp\u00f5e uma forma de escrita. Ele exige que uma determinada popula\u00e7\u00e3o aprenda escrever naquela l\u00edngua, seja o \u00e1rabe, o franc\u00eas, o portugu\u00eas, espanhol ou alem\u00e3o.<\/p>\n

 <\/p>\n

A forma escrita que conhecemos hoje chega com as escolas mission\u00e1rias e, a partir de ent\u00e3o, come\u00e7a-se a escrever em franc\u00eas, em ingl\u00eas e nas outras l\u00ednguas europeias. Me atenho aos pa\u00edses franc\u00f3fonos. Sob o dom\u00ednio colonial, existiam impressoras nos pa\u00edses africanos, eram impressoras da administra\u00e7\u00e3o colonial que imprimiam jornais, boletins, notas. A\u00ed come\u00e7am a surgir os escritores, poetas, contistas que publicavam alguns textos. Tudo sob muito controle, \u00e9 claro, s\u00f3 era publicado aquilo que agradava o editor.\u00a0Depois, a partir dos anos 1920 e 1930 come\u00e7am a surgir de fato romancistas. O romance \u201cBatouala\u201d\u00a0de\u00a0Ren\u00e9 Maran \u00e9 considerado o primeiro verdadeiro romance negro, africano. O autor \u00e9 da Martinica, mas vai para a \u00c1frica em miss\u00e3o trabalhar para a coloniza\u00e7\u00e3o francesa. Ele escreve um romance relatando sua experi\u00eancia no continente africano e sobre como os africanos escravizados eram tratados pela coloniza\u00e7\u00e3o. Esse romance foi publicado na Fran\u00e7a posteriormente, em julho de 1921. Depois disso, come\u00e7aram a surgir outros romances e a escrita se intensifica, mas ainda assim havia certos limites, como a falta de impressoras e editoras. As tem\u00e1ticas abordadas nos romances de forma\u00e7\u00e3o eram espinhosas, ent\u00e3o eles n\u00e3o tinham facilidade de publicar nas editoras. Os romances escritos em franc\u00eas surgem nesse contexto.<\/p>\n

 <\/p>\n

Por sua vez, a oralidade est\u00e1 presente em toda a hist\u00f3ria do continente africano. Ainda no cap\u00edtulo do Ki-Zerbo, o historiador observa que essa fonte \u00e9 um verdadeiro museu vivo, um reposit\u00f3rio e vetor do capital de cria\u00e7\u00f5es socioculturais acumuladas pelos povos ditos sem escrita. A tradi\u00e7\u00e3o oral nunca foi esquecida, ela tem esse papel fundamental de preservar a mem\u00f3ria de povos, culturas, etnias e religi\u00f5es do continente africano. Um dos autor que eu acompanhando desde o meu ensino fundamental e continuo estudando,\u00a0Amadou Hamp\u00e2t\u00e9 B\u00e2<\/a>, do Mali, \u00e9 considerado um dos maiores estudiosos da tradi\u00e7\u00e3o oral no continente africano. Seu livro autobiogr\u00e1fico “Amkoullel, o menino fula”<\/a> e depois o segundo,”Oui mon commandant!”<\/em>, que ainda n\u00e3o foi traduzido no Brasil, sobre a import\u00e2ncia da oralidade na forma\u00e7\u00e3o dele enquanto sujeito, intelectual, formador de opini\u00e3o e contador de hist\u00f3rias. Essa forma\u00e7\u00e3o a partir da oralidade \u00e9 transmitida a partir de uma personagem que aparece muito na forma\u00e7\u00e3o de\u00a0Amadou Hamp\u00e2t\u00e9 B\u00e2\u00a0que \u00e9 o Tierno Bokar<\/a>, um gri\u00f4, um mestre da palavra. O Tierno Bokar praticamente formou o Amadou Hamp\u00e2t\u00e9 B\u00e2, transmitindo uma parte do conhecimento que ele tinha antes de ir para a escola. O\u00a0Amadou Hamp\u00e2t\u00e9 B\u00e2 \u00e9 do Mali, um pa\u00eds que foi colonizado primeiro pelos \u00e1rabes e depois teve coloniza\u00e7\u00e3o europeia, pa\u00eds em que hoje mais de 90% da popula\u00e7\u00e3o \u00e9 mul\u00e7umana.\u00a0O\u00a0Hamp\u00e2t\u00e9 B\u00e2 teve forma\u00e7\u00e3o na escola cor\u00e2nica, antes da escola francesa, assim como eu. Eu vejo uma clara rela\u00e7\u00e3o entre essa forma\u00e7\u00e3o e a oralidade, e dessa forma\u00e7\u00e3o com a oralidade e a pr\u00f3pria forma\u00e7\u00e3o da personalidade e da atua\u00e7\u00e3o dele.<\/p>\n

Portal IDeA<\/strong>: Sobre o\u00a0Amadou Hamp\u00e2t\u00e9 B\u00e2, no livro\u00a0\u201cAmkoullel, o menino fula<\/a>\u201d\u00a0duas coisas chamam a aten\u00e7\u00e3o. Primeiro que o texto \u00e9 repleto de marcas de oralidade, \u00e9 uma escrita muito oralizada, inclusive na estrutura do texto. Outra \u00e9 a rela\u00e7\u00e3o entre oralidade e mem\u00f3ria. No primeiro par\u00e1grafo, em uma se\u00e7\u00e3o que ele chama de a mem\u00f3ria africana, ele escreve<\/p>\n

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Muitos amigos que leram o manuscrito mostram-se surpresos. Como \u00e9 que a mem\u00f3ria de um homem de mais de oitenta anos \u00e9 capaz de reconstituir tantas coisas e, principalmente, com tal min\u00facia de detalhes? \u00c9 que a mem\u00f3ria das pessoas de minha gera\u00e7\u00e3o, sobretudo a dos povos de tradi\u00e7\u00e3o oral, que n\u00e3o podiam apoiar-se na escrita, \u00e9 de uma fidelidade e de uma precis\u00e3o prodigiosas. Desde a inf\u00e2ncia, \u00e9ramos treinados a observar, olhar e escutar com tanta aten\u00e7\u00e3o, que todo acontecimento se inscrevia em nossa mem\u00f3ria como certa virgem. Tudo l\u00e1 estava nos menores detalhes: o cen\u00e1rio, as palavras, os personagens e at\u00e9 suas roupas. Quando descrevo o traje do primeiro comandante de circunscri\u00e7\u00e3o franc\u00eas que vi de perto em minha inf\u00e2ncia, por exemplo, n\u00e3o preciso me \u201clembrar\u201d, eu o vejo em uma esp\u00e9cie de tela de cinema interior e basta contar o que vejo. Para descrever uma cena, s\u00f3 preciso reviv\u00ea-la. E, se uma hist\u00f3ria me foi contatada por algu\u00e9m, minha mem\u00f3ria n\u00e3o registou somente seu conte\u00fado, mas toda a cena \u2013 a atitude do narrador, sua roupa, seus gestos, sua m\u00edmica e os ru\u00eddos do ambiente, como os sons da guitarra que o griot Di\u00eali Maadi tocava enquanto Wangrin me contava sua vida, e que ainda escuto agora….<\/em><\/p>\n

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Ent\u00e3o, segundo ele, a oralidade tem rela\u00e7\u00e3o com o modo de constru\u00e7\u00e3o da mem\u00f3ria. \u00c9 como se a oralidade inscrevesse na mem\u00f3ria uma cena, antes de tudo. E quando se trata da mem\u00f3ria do relato de algu\u00e9m, n\u00e3o \u00e9 s\u00f3 a mem\u00f3ria do texto no qual o relato \u00e9 narrado, mas do texto em seu contexto. Isto \u00e9 uma caracter\u00edstica espec\u00edfica do\u00a0Hamp\u00e2t\u00e9 B\u00e2 ou uma caracter\u00edstica mais geral?<\/p>\n

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Issaka Bano<\/strong>: Eu acho que tem tudo a ver com a oralidade. \u00c9 uma caracter\u00edstica geral, principalmente de quem trabalha com oralidade. Eu acho interessante quando ele fala sobre a mem\u00f3ria, porque ele descreve muito bem como a mem\u00f3ria participa da oralidade em uma sociedade. Essa mem\u00f3ria \u00e9 submetida a treinamentos intensos para guardar movimentos, sons, momentos, nomes, eventos, todos os detalhes dentro de uma sociedade. Hoje estamos numa \u00e9poca que tudo \u00e9 registrado no caderno, no celular, no computador, mas naquela \u00e9poca n\u00e3o. Para saber a receita de um rem\u00e9dio para curar uma determinada doen\u00e7a, precisava de algu\u00e9m que iria guardar todos os detalhes de como essa receita \u00e9 feita. Naquelas \u00e9pocas as pessoas tinham um mapeamento geogr\u00e1fico de cidades, aldeias, de como ir e como voltar. Quando ele fala do gri\u00f4, ou daquele que \u00e9 detentor da palavra, respons\u00e1vel em guardar os conhecimentos e transmitir esses conhecimentos, ele fala de algu\u00e9m que tem que ter essa capacidade de memorizar, guardar, contar de novo para os mais novos e transmitir esse conhecimento de modo preciso. Para isso, a mem\u00f3ria \u00e9 submetida a treinamentos, como repeti\u00e7\u00e3o, repeti\u00e7\u00e3o, repeti\u00e7\u00e3o, que \u00e9 presente na oralidade.<\/p>\n

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A escola cor\u00e2nica \u00e9 interessante, nesse sentido. Para se tornar uma esp\u00e9cie de pastor, naquela \u00e9poca a pessoa tem que decorar todo o Alcor\u00e3o. Para isso ela vai todos os dias \u00e0 escola cor\u00e2nica, onde o \u201cprofessor\u201d escreve um vers\u00edculos e o aluno fica l\u00e1 sentado, lendo em voz alta, com outros alunos pessoas tamb\u00e9m lendo em voz alta, todo mundo gritando e ouvindo o que todo mundo est\u00e1 falando, mas sem ningu\u00e9m prestar aten\u00e7\u00e3o na fala do outro, s\u00f3 no que o pr\u00f3prio aluno est\u00e1 falando e repetindo. Decora-se cada vers\u00edculo, a\u00ed a pessoa mostra ao professor que decorou. E assim por diante, at\u00e9 decorar o alcor\u00e3o inteiro. Claro que h\u00e1 alunos que param na metade do caminho, como eu. Isso \u00e9 muito presente nos pa\u00edses africanos majoritariamente mul\u00e7umanos.<\/p>\n

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A tradi\u00e7\u00e3o oral tamb\u00e9m cumpre esse papel de decorar. \u00c9 quase um ditado, pois para as informa\u00e7\u00f5es serem mantidas na mem\u00f3ria, essa informa\u00e7\u00e3o tem que ser repetida v\u00e1rias vezes. Por isso as hist\u00f3rias, as lendas, os mitos, os conhecimentos s\u00e3o repetidos v\u00e1rias e v\u00e1rias vezes. \u00c9 muito comum no Mali, mas tamb\u00e9m no N\u00edger e em outros pa\u00edses, que haja noites de encontro nas quais um gri\u00f4 ou um anci\u00e3o conte hist\u00f3rias. Os jovens, adolescentes e adultos ficam ao redor dele ouvindo as hist\u00f3rias que v\u00e3o ser contadas in\u00fameras vezes. O treinamento da mem\u00f3ria tamb\u00e9m est\u00e1 nesses momentos, e consciente ou inconscientemente a sociedade faz isso. O Amadou Hamp\u00e2t\u00e9 B\u00e2 fala que a gente submete a mem\u00f3ria \u00e0 repeti\u00e7\u00e3o para ela que n\u00e3o se perca. Sobre o Alcor\u00e3o, quando eu estava no N\u00edger, eu sempre ouvia: ” Por que voc\u00eas decoram tanto as coisas?” E a resposta \u00e9 que “o livro, o Alcor\u00e3o pode se perder, o papel ele desaparece. Mas a mem\u00f3ria n\u00e3o”. Eu memorizei cerca de 15, 20% do Alcor\u00e3o e, at\u00e9 hoje, 20 anos depois, isso est\u00e1 intacto na minha mem\u00f3ria. N\u00e3o esqueci nenhuma palavra.<\/p>\n

Portal IDeA<\/strong>: Em que l\u00edngua voc\u00ea lia o Alcor\u00e3o?<\/p>\n

Issaka Bano<\/strong>: Essa \u00e9 uma pergunta muito interessante e curiosa. Foi em \u00e1rabe, mas n\u00e3o necessariamente voc\u00ea precisa falar \u00e1rabe para decorar o Alcor\u00e3o. Eu n\u00e3o sei o significado e a defini\u00e7\u00e3o de absolutamente nada que eu decorei. Com o passar do tempo, voc\u00ea vai aprendendo, mas voc\u00ea decora nos primeiros anos. Depois voc\u00ea vai aprendendo a l\u00edngua \u00e1rabe e o que est\u00e1 escrito no alcor\u00e3o. Hoje h\u00e1 escolas mais profissionalizadas, escolas \u00e1rabes, mas antes voc\u00ea primeiro decorava e depois voc\u00ea descobria o que voc\u00ea decorou.<\/p>\n

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Portal IDeA<\/strong>: Tem algo muito importante no que voc\u00ea falou: essa aposta muito grande na mem\u00f3ria humana. O texto pode se perder, mas a mem\u00f3ria fica. E, no limite, o texto escrito ele s\u00f3 faz sentido se tem um leitor que d\u00e1 vida a ele. A ideia subjacente ao que voc\u00ea conta \u00e9 que o suporte da mem\u00f3ria \u00e9 um grupo de pessoas que vivem, reproduzem e transmitem a mem\u00f3ria.<\/p>\n

Issaka Bano<\/strong>: Eu suspeito que tamb\u00e9m por uma s\u00e9rie de limita\u00e7\u00f5es: papel, escolas, saber escrever. Ent\u00e3o, tiveram que procurar outras formas. Isso \u00e9 uma perspectiva tanto a partir da tradi\u00e7\u00e3o oral como da memoriza\u00e7\u00e3o do Alcor\u00e3o. Acredita-se que o papel pode desaparecer um dia, pode ter uma crise na qual v\u00e3o perseguir todos os mul\u00e7umanos, v\u00e3o queimar os Alcor\u00f5es, mas ainda assim o Alcor\u00e3o vai estar na mem\u00f3ria dos fi\u00e9is. A tradi\u00e7\u00e3o oral tamb\u00e9m pode, talvez, ser entendida nesse sentido. De que os elementos, as culturas, os contos, a sabedoria precisa ser mantida dentro da mem\u00f3ria, para al\u00e9m de tudo.<\/p>\n

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Forma\u00e7\u00e3o da literatura africana<\/h3>\n

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Portal IDeA<\/strong>: No volume 8 da Hist\u00f3ria Geral da \u00c1frica, no cap\u00edtulo sobre literatura, os autores afirmam que a poesia foi um g\u00eanero privilegiado pelos autores africanos e que o romance seria o g\u00eanero mais europeu. A poesia permitiria mais que essa tradi\u00e7\u00e3o da narrativa africana pudesse se desenvolver. Voc\u00ea est\u00e1 de acordo com essa interpreta\u00e7\u00e3o?<\/p>\n

 <\/p>\n

Issaka Bano<\/strong>: Eu concordo. T\u00eam v\u00e1rios escritores e intelectuais que concordam e v\u00e3o nesse caminho. A poesia foi uma das primeiras manifesta\u00e7\u00f5es art\u00edsticas e liter\u00e1rias no continente africano. No per\u00edodo da coloniza\u00e7\u00e3o, os primeiros textos que come\u00e7aram a ser publicados eram poemas, contos e outros tipos de escrita. O romance em si nasce bem depois, muito a partir da rela\u00e7\u00e3o do homem negro africano com o europeu. A Fran\u00e7a tem uma tradi\u00e7\u00e3o liter\u00e1ria antiqu\u00edssima. Uma das primeiras coisas que o\u00a0Mongo Beti (pseud\u00f4nimo de Alexandre Biyidi Awala), L\u00e9opold S\u00e9dar Senghor e outros intelectuais africanos relatam ter feito quando foram para Paris foi se debru\u00e7arem sobre os romances de escritores franceses.<\/p>\n

 <\/p>\n

Portal IDeA<\/strong>: Essa \u00e9 uma literatura que se desenvolve com autores africanos, mas que prontamente circula nos pa\u00edses nos quais se falam as l\u00ednguas europeias em que os livros est\u00e3o escritos. Tem uma circula\u00e7\u00e3o na Fran\u00e7a, nos pa\u00edses franc\u00f3fonos. Vale o mesmo para o Ingl\u00eas. Em suma, \u00e9 uma literatura que nasce mais internacionalizada. Como isso se deu?<\/p>\n

 <\/p>\n

 <\/p>\n

Portal IDeA<\/strong>: \u00c9 uma literatura que tem um reconhecimento questionado no in\u00edcio, mas\u00a0vai conseguir reconhecimento ao longo dos anos e reconhecimento de grande envergadura.<\/p>\n

 <\/p>\n

Issaka Bano: Os escritores africanos v\u00e3o ganhando uma envergadura maior e um reconhecimento na cena da literatura mundial. Suas obras est\u00e3o cada vez mais presentes. Prof. Nazir Ahmed Can e eu termininamos de escrever um artigo recentemente sobre a recep\u00e7\u00e3o de\u00a0Alain Mabanckou<\/a>\u00a0no Brasil e os principais temas estudados nas universidades brasileiras. Quando fui escrever eu pesquisei sobre outros pa\u00edses nos quais ele foi traduzido, descobri que ele estava publicado em sueco, em polon\u00eas, espanhol, alem\u00e3o, italiano. Assim como outros e outras africano. A Fatou Diome tem muitas obras traduzidas, inclusive em chin\u00eas ou japon\u00eas. Eu acho que h\u00e1 um interesse claro do ocidente, ou pelo menos pelo meio acad\u00eamico do ocidente, em estudar escritores africanos de um modo geral. As principais universidades europeias t\u00eam centros de estudos africanos. Elas t\u00eam feito um esfor\u00e7o para atrair esses escritores e intelectuais para trabalharem em seus departamentos. Por exemplo, a pr\u00f3pria Fatou Diome e o\u00a0Alain Mabanckou<\/a>, que est\u00e1 na UCLA, no Departamento de Estudos Africanos. N\u00f3s estamos t\u00e3o acostumados \u00e0 literatura europeia, \u00e0 narrativa europeia, que \u00e9 necess\u00e1rio olhar o mundo a partir de uma outra perspectiva, outra narrativa. Quando li o livro “<\/a>Fique comigo”<\/a> de uma escritora jovem, a\u00a0Ad\u00e9b\u00e1y\u00f2\u00a0Ay\u00f2b\u00e1mi, eu pensei: \u00c9 o tipo de narrativa que a gente precisa. Qualquer pessoa, de qualquer lugar, vai ler e dizer “eu li alguma coisa diferente”. Eu lembro de uma fala do Ant\u00f4nio Candido, numa palestra na USP, na qual perguntaram se ele continuava lendo obras, acompanhando a literatura moderna, os autores recentes. Ele respondeu que tinha parado em 1980 e que n\u00e3o lia mais nada, porque ele achava que n\u00e3o tinha novidade nas obras publicadas, que todos os romances que ele lia, ele conseguia achar uma similaridade com algo que ele leu antes. Novidade, mesmo, ele n\u00e3o encontrava. N\u00e3o estou tratando da literatura ocidental aqui, mas quando eu leio escritores africanos, eu consigo ver uma novidade na produ\u00e7\u00e3o liter\u00e1ria. O livro “Fique comigo” da\u00a0Ad\u00e9b\u00e1y\u00f2 e “<\/a>Contornos do dia que vem vindo”<\/a> de\u00a0L\u00e9onora Miano s\u00e3o excelentes. Escritoras novas que produziram duas obras magn\u00edficas que voc\u00ea l\u00ea e fala “isso \u00e9 um romance diferente. Eu estou lendo uma novidade aqui\u201d.<\/p>\n

 <\/p>\n

Portal IDeA<\/strong>: Falando sobre autoras, na colet\u00e2nea de Hist\u00f3ria Geral da \u00c1frica fala-se muito pouco sobre elas no cap\u00edtulo sobre literatura. J\u00e1 nos livros que voc\u00ea organizou, as mulheres aparecem com muito mais for\u00e7a. Voc\u00ea pode falar um pouco mais sobre a literatura africana escrita por mulheres?<\/p>\n

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Issaka Bano<\/strong>: Desde o primeiro livro que a gente organizou, uma antologia intitulada “As\u00a0\u00c1fricas dentro de mim”, uma\u00a0das conversas que eu tive \u00e9 que eu queria que metade dos autores fossem mulheres e a outra metade, homens. Eu sempre tive essa preocupa\u00e7\u00e3o da paridade. Elas aparecem no cen\u00e1rio liter\u00e1rio s\u00f3 nos anos 1970. As mulheres, nas sociedades africanas nos anos 30, 40, 50, tinham um outro papel. Elas come\u00e7am a ir para a escola recentemente, h\u00e1 uns 30 anos. Comparando a taxa de alfabetiza\u00e7\u00e3o entre homens e mulheres, talvez a deles estejam entre 60-70% e elas 15%, principalmente em pa\u00edses mul\u00e7umanos, porque se casam novas.\u00a0Hoje, a educa\u00e7\u00e3o nestes pa\u00edses avan\u00e7ou bastante e as m\u00e3es, principalmente, t\u00eam exigido que as filhas possam estudar, fazer uma universidade, ocupar cargos p\u00fablicos, de participar da sociedade de forma efetiva. Quando as escritoras africanas chegam ao espa\u00e7o liter\u00e1rio, elas chegam com uma for\u00e7a muito grande. Hoje eu leio mais romances de mulheres do que de homens. Se a pessoa me para e pede indica\u00e7\u00e3o de 5 romances, os 4 primeiros que v\u00eam na minha cabe\u00e7a s\u00e3o de mulheres e um, de homem. Eu citei dois, um da\u00a0L\u00e9onora Miano e outro da\u00a0Ad\u00e9b\u00e1y\u00f2\u00a0Ay\u00f2b\u00e1mi. A escrita delas traz uma outra perspectiva, uma perspectiva feminina da realidade. A gente est\u00e1 dentro de uma sociedade com problemas sociais e elas trazem quest\u00f5es que n\u00e3o s\u00e3o discutidas. Eu gosto bastante do \u00a0Chinua Achebe<\/a>, um baita escritor, considerado o pai da literatura africana, mas quando ele faz a an\u00e1lise do papel da mulher na sociedade, mas ele falha em alguns pontos. As \u00fanicas pessoas que conseguem trazer uma outra perspectiva, uma outra leitura s\u00e3o elas. Tem outra escritora nigeriana Buchi Emecheta<\/a> que traz outra perspectiva al\u00e9m de\u00a0Chinua Achebe.<\/p>\n

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Resumindo, as mulheres t\u00eam um papel fundamental Fatou Diome, Calixthe Beyala, Ad\u00e9b\u00e1y\u00f2, s\u00e3o dezenas de escritoras africanas que est\u00e3o produzindo o tempo inteiro obras magn\u00edficas, trazem uma outra reflex\u00e3o, falando a partir de uma outra perspectiva. O livro \u201cFique comigo\u201d me interessou porque em sociedades africanas, principalmente mul\u00e7umanas, a mulher n\u00e3o tem muita liberdade e a\u00a0Ad\u00e9b\u00e1y\u00f2 discute, por exemplo, quest\u00f5es como educa\u00e7\u00e3o sexual, monogamia e disfun\u00e7\u00e3o er\u00e9til. S\u00e3o temas tabus, mas s\u00e3o que precisam ser discutidos. Aquele problema, naquela sociedade, s\u00f3 existe porque n\u00e3o se discute educa\u00e7\u00e3o sexual. Um tema interessant\u00edssimo tamb\u00e9m \u00e9 a disfun\u00e7\u00e3o er\u00e9til. Voc\u00ea vai discutir isso numa sociedade extremamente machista? No livro, os personagens centrais se casam, mas n\u00e3o conseguem ter filho. Se ela n\u00e3o est\u00e1 engravidando, o problema \u00e9 ela. A fam\u00edlia inteira, toda a sociedade acha que a personagem n\u00e3o consegue ter filhos, que o problema \u00e9 ela. Ent\u00e3o, eles v\u00e3o achar uma segunda esposa para o personagem. Acontece uma trag\u00e9dia, ele se livra da segunda esposa, mas continuam culpando a mulher. Em nenhum momento a fam\u00edlia, a sociedade, as pessoas, dentro da narrativa, pensam que talvez a culpa seja do homem. Eu acho interessante pelas quest\u00f5es que trazem a escrita feminina no continente africano. A Calixthe Beyala \u00e9 outra escritora que eu gosto bastante, mas que eu acho que vai demorar bastante para ser traduzida no Brasil, porque a escrita dela \u00e9 bem intensa. Ela \u00e9 bem cr\u00edtica, \u00e9 uma escritora que eu acho que vale a pena conhecer.<\/p>\n

Portal IDeA<\/strong>: Toda a tradi\u00e7\u00e3o oral dos gri\u00f4s, da reconstitui\u00e7\u00e3o da mem\u00f3ria, \u00e9 uma tradi\u00e7\u00e3o masculina?<\/p>\n

Issaka Bano<\/strong>: Me parece mais masculina. Eu acho que vi duas, tr\u00eas gri\u00f4s mulheres, no m\u00e1ximo, nos meus 18 anos no Niger. J\u00e1 gri\u00f4s homens t\u00eam um monte. O\u00a0Amadou Hamp\u00e2t\u00e9 B\u00e2 tenta justificar em algum momento da vida dele que isso era um papel do homem, que a mulher tinha um outro papel, uma outra fun\u00e7\u00e3o dentro da sociedade.<\/p>\n

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Portal IDeA<\/strong>: Nesse mesmo cap\u00edtulo da colet\u00e2nea Hist\u00f3ria Geral da \u00c1frica, as crian\u00e7as n\u00e3o s\u00e3o citadas, n\u00e3o se fala sobre literatura infantil. Por outro lado, no Brasil, vemos um movimento de literatura infantil voltada para a tem\u00e1tica de ra\u00e7a e antirracismo. Vemos ind\u00edcios disso nas indica\u00e7\u00f5es de leitura nas escolas, em revistas de parentalidade, e na presen\u00e7a de editoras, como a Mostarda<\/a>, voltada para a literatura infantil com essa tem\u00e1tica. Pensando nesse contexto, quer\u00edamos te ouvir sobre a literatura infantil africana.<\/p>\n

Issaka Bano: Algumas semanas atr\u00e1s, uma professora da educa\u00e7\u00e3o b\u00e1sica entrou em contato comigo pedindo indica\u00e7\u00e3o de literatura infantil. Essa literatura existe nos pa\u00edses africanos, mas n\u00e3o s\u00e3o traduzidas aqui no Brasil. Eu tenho uma lista de obras de escritores sobre literatura infantil que foram publicadas no Brasil, mas ainda assim \u00e9 muito pouco comparado com romances para adultos. Eu n\u00e3o consigo entender o porqu\u00ea n\u00e3o s\u00e3o traduzidas, pois a minha impress\u00e3o \u00e9 que literatura infantil vende mais do que os romances adultos. Tem raz\u00f5es editoriais e um outro motivo, mais geral para n\u00e3o serem traduzidas, \u00e9 que a literatura africana de l\u00edngua francesa, como um todo, est\u00e1 chegando mais intensamente ao Brasil agora.<\/p>\n

Portal IDeA<\/strong>: Essa literatura infantil \u00e9 mais recente?<\/p>\n

Issaka Bano<\/strong>: Sim, de um modo geral. O\u00a0Alain Mabanckou\u00a0tem um livro publicado no Brasil que \u00e9 Irm\u00e3-Estrela<\/a>. Essa publica\u00e7\u00e3o teve parceria com o Minist\u00e9rio da Educa\u00e7\u00e3o, justamente com esse interesse de trazer a literatura infanto-juvenil em escolas e outros ambientes. H\u00e1 outros autores e autoras que tamb\u00e9m foram traduzidos, mais ainda \u00e9 bem pouco. Na minha lista tem cerca de 14 livros.<\/p>\n

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Recep\u00e7\u00e3o da literatura africana no Brasil<\/h3>\n

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Portal IDeA<\/strong>: Vamos falar sobre a recep\u00e7\u00e3o da literatura africana no Brasil? Quais os caminhos ela segue? Imagino que primeiro tenha chegado a literatura de l\u00edngua portuguesa e depois as outras, a em l\u00edngua francesa e inglesa.<\/p>\n

Issaka Bano<\/strong>: Eu conhe\u00e7o menos a literatura africana de l\u00edngua portuguesa. Normalmente, alguns livros s\u00e3o publicados primeiro em Angola, Mo\u00e7ambique, Guin\u00e9-Bisau e Cabo Verde, ou ent\u00e3o publicados em Portugal e depois republicado aqui no Brasil, adaptado ao portugu\u00eas do Brasil. O tr\u00e2nsito \u00e9 mais ou menos esse, ele vai pra Portugal primeiro para depois vir para o Brasil. O mais recente livro do Pepetela que foi traduzido aqui no Brasil, o romance “<\/a>Jaime Bunda-um agente secreto”<\/a>, j\u00e1 tinha sido publicado em Portugal h\u00e1 muito tempo e depois foi feita a publica\u00e7\u00e3o aqui pela editora Kapulana adaptada para o portugu\u00eas brasileiro.Mais recentemente, tem-se publicado obras diretamente em editoras\u00a0brasileiras, por exemplo a Editora Mal\u00ea<\/a>, a editora Kapulana<\/a>,\u00a0 a Companhia das Letras<\/a> e a Globo Livros<\/a>. Todas essas editoras t\u00eam publicado diretamente, mas isso \u00e9 muito recente.<\/p>\n

Portal IDeA<\/strong>: Em uma discuss\u00e3o organizada pelo Coletivo Ra\u00edzes S\u00e3o Paulo, foi falado que o governo Salazar regulava o tr\u00e2nsito da literatura africana em l\u00edngua portuguesa para o Brasil. Com essa triangula\u00e7\u00e3o, regulava qual literatura africana chegava ao Brasil.<\/p>\n

Issaka Bano<\/strong>: Portugal fez um esfor\u00e7o muito grande para publicar os autores africanos de l\u00edngua portuguesa, ao mesmo tempo exercendo poder sobre sua difus\u00e3o.<\/p>\n

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Portal IDeA<\/strong>: E quanto \u00e0 literatura em l\u00edngua francesa?<\/p>\n

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Issaka Bano<\/strong>: Quanto \u00e0 literatura africana de l\u00edngua francesa, eu n\u00e3o sei qual foi o primeiro romance traduzido e publicado no Brasil. No entanto, professor Fernando Albuquerque de Mour\u00e3o<\/a> () coordenou uma cole\u00e7\u00e3o muito importante pela Editora \u00c1tica<\/a> na qual aparecem os primeiros romances de escritores africanos de l\u00edngua francesa traduzidos no Brasil. Tem o \u201cAventura amb\u00edgua\u201d Bernard Dadi\u00e9, por exemplo. Logo depois come\u00e7am a surgir outras tradu\u00e7\u00f5es de outros escritores.\u00a0Essas tradu\u00e7\u00f5es se intensificam nos \u00faltimos 10 anos, quando tem o interesse da editora Companhia das Letras, mais recentemente a editora Kapulana e a Mal\u00ea.<\/p>\n

Portal IDeA<\/strong>: A recep\u00e7\u00e3o da literatura de\u00a0l\u00edngua\u00a0inglesa segue um caminho parecido com a de\u00a0l\u00edngua\u00a0francesa ou tem alguma particularidade?<\/p>\n

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Issaka Bano<\/strong>:\u00a0Por causa do\u00a0Chinua Achebe e outros escritores que eu mencionei, a literatura africana de l\u00edngua inglesa chega um pouco antes da em l\u00edngua francesa, mas depois da em l\u00edngua portuguesa. Um pesquisador da federal do Rio de Janeiro chamado Ricardo Luiz Pedrosa Alves<\/a> mostra dados quantitativos sobre as publica\u00e7\u00f5es dessas obras: os autores traduzidos e as pesquisas realizadas.<\/p>\n

A literatura africana de\u00a0l\u00edngua\u00a0francesa tem uma porcentagem bem pequena, comparando com a de l\u00edngua inglesa e portuguesa. A recep\u00e7\u00e3o da literatura africana de l\u00edngua inglesa \u00e9 bem maior que a em l\u00edngua francesa. A universidade tem um papel fundamental na divulga\u00e7\u00e3o dessas obras. Primeiro o autor \u00e9 estudado, analisado e a pessoa que faz a pesquisa de mestrado ou doutorado faz a an\u00e1lise com o romance original, na l\u00edngua que foi escrito, e nas faculdades de letras, tamb\u00e9m h\u00e1 propostas de tradu\u00e7\u00e3o desses romances. Muitos desses romances, inicialmente, foram traduzidos das\u00a0l\u00ednguas\u00a0inglesa e francesa porque, nas faculdades de letras, algu\u00e9m\u00a0prop\u00f4s\u00a0a pesquisa de mestrado e doutorado sobre como traduzir a obras. Posteriormente, alguma editora acabou publicando o livro.<\/p>\n

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Portal IDeA<\/strong>: A literatura africana tem sido estudada nas universidades brasileiras?<\/p>\n

Issaka Bano<\/strong>: Num artigo que eu vou publicar com o Prof. Nazir Ahmed Can na Cambridge Journal of Postcolonial Literary Inquiry, percebemos que,\u00a0no mundo lus\u00f3fono, o\u00a0Brasil \u00e9 o que mais estuda literatura africana em l\u00edngua portuguesa, inglesa e francesa. Muito mais do que Portugal, embora Portugal tenha come\u00e7ado a publicar e produzir essa literatura bem antes. T\u00eam v\u00e1rios fatores envolvidos. Um \u00e9 o interesse da popula\u00e7\u00e3o em si. Outro \u00e9 o efeito da lei 10.639. Tem havido uma grande discuss\u00e3o sobre quest\u00f5es raciais no Brasil e o movimento negro brasileiro v\u00e1rias vezes reivindicou a presen\u00e7a dessa literatura no pa\u00eds, o que n\u00e3o se tem em Portugal. Em Portugal n\u00e3o h\u00e1 uma lei 10.639 sobre a\u00a0obrigatoriedade\u00a0de ensino da\u00a0\u00c1frica\u00a0e da literatura afro-brasileira em sala de aula.<\/p>\n

 <\/p>\n

A gente percebeu que, embora as universidades\u00a0portuguesas\u00a0sejam, mais antigas, o Brasil tem muito mais universidades com departamentos de estudos sobre a \u00c1frica e o continente africano. Quando eu estava escrevendo o artigo, eu sofri para achar publica\u00e7\u00f5es e produ\u00e7\u00e3o de teses e disserta\u00e7\u00f5es em universidades portuguesas sobre literatura africana de l\u00edngua francesa. Eu mandava mensagem para meus amigos em Portugal perguntando e as respostas eram “aqui em Portugal a gente n\u00e3o tem muito interesse”. Outra compara\u00e7\u00e3o, o\u00a0Alain Mabanckou<\/a>\u00a0tem s\u00f3 um livro publicado em Portugal, enquanto aqui no Brasil j\u00e1 estamos no quarto ou quinto livro. Outros autores n\u00e3o foram nem traduzidos. Eu acho que o Brasil tem tido um interesse muito grande para publicar os autores.<\/p>\n

 <\/p>\n

Claro que, no meu caso, que leio e compro muitos livros, eu vejo que o que foi publicado no Brasil \u00e9 pouco comparado com o que existe. Mas, ao mesmo tempo, o que foi traduzido e publicado no Brasil \u00e9 superior do que muitos pa\u00edses, inclusive alguns na Europa. Claro que a gente n\u00e3o pode comparar com a Fran\u00e7a, que foi o pa\u00eds colonizador dos pa\u00edses africanos de l\u00edngua francesa e os escritores africanos basicamente se formaram na Fran\u00e7a, publicaram l\u00e1 e as obras s\u00e3o publicadas em franc\u00eas. Com a Fran\u00e7a, n\u00e3o tem compara\u00e7\u00e3o poss\u00edvel.<\/p>\n

 <\/p>\n

Eu gosto bastante do que tem se desenvolvido aqui no Brasil, embora tenha essas aus\u00eancias. Eu gosto muito do Mongo Beti, ele tem mais de dez romances publicados. Outro romance interessante \u00e9 o Pelourinho<\/a>\u201d, do\u00a0Tierno Mon\u00e9nembo, traduzido e publicado em 2022 pela Editora N\u00f3s<\/a>. Esse romance \u00e9 sobre um africano que sai do continente, ele n\u00e3o fala especificamente de qual pa\u00eds, e vai para Salvador. A miss\u00e3o inicial dele era descobrir quem s\u00e3o os primos distantes da\u00a0\u00c1frica\u00a0que residiam na Am\u00e9rica\u00a0Latina. Essa experi\u00eancia \u00e9 o contr\u00e1rio do que \u00e9 feito pelos\u00a0afrodescendentes\u00a0de ir para\u00a0\u00c1frica\u00a0para tentar descobrir de onde vieram seus ancestrais. Na narrativa do romance o movimento \u00e9 descobrir quem s\u00e3o os descentes daquele que sa\u00edram do continente durante o tr\u00e1fico negreiro.<\/p>\n

Portal IDeA: Para finalizar, o que voc\u00ea recomendaria para ser lido como um panorama da literatura africana?<\/p>\n

Issaka Bano: Eu indicaria fortemente “Fique comigo”, “Contornos do dia que vem vindo”, O Pelourinho”, “Aventura Amb\u00edgua”, do\u00a0Cheik Hamidou Kane. Os livros da\u00a0Scholastique Mukasonga, “Mulher de p\u00e9s descal\u00e7os”<\/a> e “Baratas”<\/a>. O\u00a0Chinua Achebe tem uma trilogia que eu gosto bastante: O mundo se despeda\u00e7a, A paz dura pouco e A Flecha de Deus. Sobre poesia, eu n\u00e3o conhe\u00e7o nenhum livro traduzido. H\u00e1 poemas soltos, mas n\u00e3o tem um livro de poesia traduzido.\u00a0 Eu gosto tamb\u00e9m dos autores negros brasileiros. Recentemente eu tenho lido novamente a Concei\u00e7\u00e3o Evaristo e a Sueli Carneiro que n\u00e3o \u00e9 uma romancista, Cuti, Maria Firmina dos Reis. Li quase todas as obras de Machado de Assisti. Alguns anos atr\u00e1s ganhei de presente de anivers\u00e1rio a cole\u00e7\u00e3o \u201cTodos os romances e contos consagrados\u201d e li todos os livros.<\/p>\n

_______<\/p>\n

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Como citar<\/p>\n

BANO, Issaka. Entrevista Literatura Africana. [Entrevista concedida a] Mauricio Ernica e Viviane Ramos. In RAMOS, Viviane; ERNICA, Mauricio Newsletter do Portal IDeA: Desigualdade racial e os 20 anos da lei 10.639. Portal IDeA, n.12, mar\u00e7o.2023.<\/p>\n

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Issaka Bano<\/strong>: Sim, \u00e9 uma literatura que nasce fora do continente africano, a partir de intelectuais escritores que v\u00e3o para a Fran\u00e7a. Um dado curioso \u00e9 que at\u00e9 aquela \u00e9poca, come\u00e7o dos anos 1960, n\u00e3o tinha universidade com curso de letras e hist\u00f3ria nos pa\u00edses africanos de l\u00edngua francesa. Quem conclu\u00eda o ensino m\u00e9dio ou o curso t\u00e9cnico e quisesse fazer uma faculdade tinha que se deslocar para Paris, para a metr\u00f3pole, fazer a gradua\u00e7\u00e3o. Muitos acabam fazendo letras, como o Mongo Beti que tamb\u00e9m foi professor por muitos anos na Fran\u00e7a. Ali em Paris eles come\u00e7am a escrever seus romances, mas t\u00eam dificuldade de publicar em editoras franceses. Da\u00ed acharam necess\u00e1rio fundar uma editora pr\u00f3pria, a Pr\u00e9sence Africaine<\/em><\/a>, com o apoio de intelectuais franceses, entre eles o Sartre. Eles precisavam que seus romances fossem publicados em um lugar de confian\u00e7a que n\u00e3o restringissem, ou controlassem a criatividade art\u00edstica, as tem\u00e1ticas que seriam publicados. Em rela\u00e7\u00e3o \u00e0s tem\u00e1ticas, \u00e9 importante observar que estamos no per\u00edodo colonial. Muitos pa\u00edses estavam lutando para conquistar suas independ\u00eancias. E a literatura teve um papel importante nesse processo: denunciar a viol\u00eancia colonial.<\/p>\n