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Entrevista com o professor Murillo Marschner Alves de Brito, do Departamento de Sociologia da USP, sobre as pesquisas nacionais e internacionais que abordam a expans\u00e3o, transforma\u00e7\u00e3o e desigualdades dos sistemas de ensino.<\/p>\n

Entrevista com Murillo Marschner Alves de Brito – 21\/07\/2020<\/strong><\/p>\n

O Portal IDeA conversou com Murillo Marschner Alves de Brito, do Departamento de Sociologia da USP, sobre uma agenda de pesquisas internacional e brasileira que vem se dedicando ao estudo das transforma\u00e7\u00f5es pelas quais passam as desigualdades educacionais durante per\u00edodos de expans\u00e3o dos sistemas de ensino. Essas pesquisas estudam as desigualdades de chances que diferentes classes sociais possuem de realizar certas transi\u00e7\u00f5es de etapas da escolariza\u00e7\u00e3o. Uma vez que partilham de metodologias, objetos e hip\u00f3teses, elas permitem a compara\u00e7\u00e3o de resultados ocorridos em diferentes realidades nacionais. As pesquisas sobre a realidade brasileira tra\u00e7am um retrato das transforma\u00e7\u00f5es pelas quais vem passando o sistema de ensino brasileiro nas \u00faltimas d\u00e9cadas fornecem um bom ponto de vista sobre a realidade atual e sobre as tend\u00eancias em curso. Participaram da conversa, pelo Portal IDeA, Mauricio Ernica e Viviane Ramos.<\/strong><\/p>\n

Portal IDeA: Essa \u00e9 uma agenda internacional de pesquisa. Como voc\u00ea chegou a ela?<\/strong><\/p>\n

Murillo Marschner Alves de Brito<\/strong>: Eu queria come\u00e7ar dizendo que \u00e9 um prazer estar com voc\u00eas aqui e conversar sobre assuntos que nos mobilizam. A gente n\u00e3o pesquisa as coisas por acaso, mas porque se sente mobilizado, acredita que s\u00e3o quest\u00f5es relevantes. Para a minha gera\u00e7\u00e3o, \u00e9 at\u00e9 razoavelmente surpreendente perceber a maneira como o debate sobre desigualdades n\u00e3o vendo sendo tratado de modo razo\u00e1vel no Brasil.<\/p>\n

O problema das desigualdades sempre me pareceu o problema central da sociedade brasileira, uma das mais desiguais do mundo. Eu encontrei na agenda de pesquisa sobre desigualdades educacionais um argumento muito forte no entendimento da estrutura das desigualdades no pa\u00eds e, para mim, \u00e9 muito dif\u00edcil imaginar como pessoas que t\u00eam uma no\u00e7\u00e3o clara das desigualdades no pa\u00eds n\u00e3o considerem isso um problema absolutamente central. Temos agendas diferentes de desigualdades dentro do campo da educa\u00e7\u00e3o. Eu identifico mais claramente uma discuss\u00e3o muito clara sobre estratifica\u00e7\u00e3o educacional e uma agenda muito clara sobre desempenho, profici\u00eancia. Esse segundo campo de pesquisa \u00e9 mais abordado nas faculdades de educa\u00e7\u00e3o e o da estratifica\u00e7\u00e3o \u00e9 mais abordado nas faculdades de ci\u00eancias sociais.<\/p>\n

A minha trajet\u00f3ria n\u00e3o est\u00e1 toda colada na discuss\u00e3o da educa\u00e7\u00e3o, embora eu seja da \u00e1rea de desigualdades. At\u00e9 o in\u00edcio do meu doutorado, eu era uma pessoa da \u00e1rea de sociologia do trabalho. Eu atuava no Cebrap (Centro Brasileiro de An\u00e1lise e Planejamento) em uma pesquisa com dados da Unicamp, em que a gente estava interessado em olhar os efeitos da pol\u00edtica de inclus\u00e3o da Unicamp na \u00e9poca, o PAAIS (Programa de A\u00e7\u00e3o Afirmativa e Inclus\u00e3o Social), uma pol\u00edtica de a\u00e7\u00e3o afirmativa no vestibular por meio de bonifica\u00e7\u00e3o. A discuss\u00e3o sobre a\u00e7\u00e3o afirmativa estava num cume, que est\u00e1 voltando, e a gente estava interessado em entender melhor os efeitos do programa sobre resultados dos ingressantes na Unicamp.<\/p>\n

Nossa primeira pergunta era sobre desempenho. Come\u00e7amos a perceber que a gente n\u00e3o conseguia discriminar os estudantes da Unicamp de acordo com caracter\u00edsticas sociais para definir padr\u00f5es; ou seja, associar certas vari\u00e1veis \u00e0 varia\u00e7\u00e3o do desempenho deles. Era uma pesquisa coordenada pela Nadya Ara\u00fajo Guimar\u00e3es inicialmente tocada pelo Ant\u00f4nio S\u00e9rgio Guimar\u00e3es e algumas pessoas da Unicamp, como o Maur\u00edcio Kleinke e o Renato Pedrosa, que atuavam na Comiss\u00e3o de Vestibular. Eram pessoas que estavam envolvidas nesse estudo, particularmente interessadas em entender como transformar a estrutura de oportunidades para candidatos na Unicamp por meio do PAAIS.<\/p>\n

Eu ficava intrigado que as caracter\u00edsticas socioecon\u00f4micas n\u00e3o permitiam a gente discriminar as pessoas de acordo com os resultados delas na Unicamp, quando a gente olhava os aprovados. Ent\u00e3o, atrav\u00e9s de um curso com o professor Carlos Ant\u00f4nio da Costa Ribeiro, uma das pessoas que faz parte dessa agenda de pesquisa, tomei contanto com o debate sobre estratifica\u00e7\u00e3o educacional e encontrei uma estrutura, uma agenda de pesquisa de natureza internacional comparada que me ajudava a entender por que eu estava me deparando com aqueles dados dos estudantes da Unicamp. Quando a gente est\u00e1 falando dos estudantes da Unicamp, estamos falando do topo do topo da hierarquia educacional brasileira e aquele resultado estava mostrando que n\u00e3o havia variabilidade socioecon\u00f4mica no topo do topo.<\/p>\n

Ent\u00e3o, o que poderia explicar o resultado que a gente estava obtendo? Eu poderia explicar aquilo se recorresse a suposi\u00e7\u00f5es te\u00f3ricas dessa agenda de pesquisa. Para mim estava muito claro que o que acontecia era que a seletividade socioecon\u00f4mica na progress\u00e3o educacional dos estudantes que n\u00e3o entravam, operava antes da entrada deles. Isso fazia com que a popula\u00e7\u00e3o de estudantes da Unicamp fosse muito homog\u00eanea do ponto de vista socioecon\u00f4mico. Era por isso que a gente n\u00e3o conseguia identificar fatores socioecon\u00f4micos tendo algum efeito sobre o resultado deles quando a gente olhava o rendimento semestral. Isso era totalmente contraintuitivo para mim na \u00e9poca, porque toda a literatura na sociologia da educa\u00e7\u00e3o mostra o efeito da distribui\u00e7\u00e3o socioecon\u00f4mica da popula\u00e7\u00e3o em classes sobre os resultados. Era contraintuitivo, mas muito intrigante. A partir da\u00ed, redefini minha agenda de pesquisa.<\/p>\n

Portal IDeA: Para come\u00e7ar, voc\u00ea poderia nos contar um pouco sobre essa agenda de pesquisa internacional. Gostaria de come\u00e7ar pela ideia de valor que orienta a pesquisa, por seu conceito de justi\u00e7a. Um conceito de justi\u00e7a cria ponto de vista normativo, muito mais do que expressa numa realidade emp\u00edrica. Esse ponto de vista permite tanto analisar a sociedade, quanto definir um horizonte para onde se deseja que ela v\u00e1.<\/strong><\/p>\n

Murillo Brito:<\/strong>\u00a0N\u00e3o tem pesquisa sem valor e essa agenda tem um valor muito significativo para mim, que est\u00e1 muito bem expresso em um artigo de 2003 do Nelson do Valle Silva no livro\u00a0Origens e Destinos<\/em>. Ele inicia o artigo sobre estratifica\u00e7\u00e3o educacional apresentando a principal suposi\u00e7\u00e3o te\u00f3rica dessa agenda e sua natureza valorativa. Essa agenda formula o problema da desigualdade educacional de modo que a an\u00e1lise da distribui\u00e7\u00e3o de oportunidades em uma sociedade permite analisar a natureza democr\u00e1tica daquela sociedade. O problema te\u00f3rico fundamental \u00e9 a associa\u00e7\u00e3o entre a origem social das pessoas e o destino educacional delas. A suposi\u00e7\u00e3o \u00e9 que uma sociedade vai ser t\u00e3o mais democr\u00e1tica \u2013 ou seja, a desigualdade de oportunidades vai ser t\u00e3o menor \u2013 quanto menor for a associa\u00e7\u00e3o entre a origem social das pessoas e o destino educacional delas.<\/p>\n

Muitas vezes ouvi cr\u00edticas sobre qual o horizonte de igualdade a gente mira, refleti muito e cheguei em paz \u00e0 conclus\u00e3o de que a gente n\u00e3o mira nenhum horizonte espec\u00edfico de igualdade. Obviamente, nenhum dos pesquisadores e pesquisadoras envolvidos nessa agenda trabalha com uma vis\u00e3o ilus\u00f3ria de que em algum momento n\u00f3s vamos chegar a um ponto de igualdade absoluta de oportunidades. Isso n\u00e3o vai acontecer. Ningu\u00e9m pesquisa essas coisas mirando isso como realidade emp\u00edrica. Mas essa formula\u00e7\u00e3o valorativa nos permite avaliar, em sociedades espec\u00edficas, o n\u00edvel de democratiza\u00e7\u00e3o de oportunidades e, em particular, de oportunidades educacionais. Uma sociedade na qual a origem social est\u00e1 mais associada com o destino educacional do que em outras, \u00e9 uma sociedade mais desigual. Isso significa dizer que, se a gente avan\u00e7a no Brasil para n\u00edveis mais baixos de associa\u00e7\u00e3o entre origem social e destino educacional, estamos caminhando para uma sociedade mais igualit\u00e1ria do ponto de vista das oportunidades educacionais. Eu acho isso muito relevante porque para mim, e isso \u00e9 um valor. A desigualdade \u00e9 um dos principais, sen\u00e3o o principal problema da sociedade brasileira. N\u00e3o s\u00f3 a desigualdade educacional, mas a dimens\u00e3o educacional da desigualdade \u00e9 muito central para a defini\u00e7\u00e3o desses padr\u00f5es gerais de estratifica\u00e7\u00e3o. Essa suposi\u00e7\u00e3o dessa agenda \u00e9 muito poderosa, tanto do ponto de vista pol\u00edtico como acad\u00eamico, metodol\u00f3gico.<\/p>\n

Portal IDeA: Como as pesquisas emp\u00edricas t\u00eam se desenvolvido? No s\u00e9culo XX, houve expans\u00e3o dos sistemas de ensino e, efetivamente, as gera\u00e7\u00f5es mais jovens foram completando mais anos de estudo do que as gera\u00e7\u00f5es anteriores. No entanto, essa agenda de pesquisas tensiona esse dado ao analisar a associa\u00e7\u00e3o entre origem e destino, entre a posi\u00e7\u00e3o social de origem e trajet\u00f3ria educacional. Queria que voc\u00ea contasse como esse problema foi armado e como se faz para observar a manuten\u00e7\u00e3o ou a transforma\u00e7\u00e3o dos sistemas de desigualdade em sistemas que se expandem.<\/strong><\/p>\n

Murllo Brito:<\/strong>\u00a0Ent\u00e3o, a distin\u00e7\u00e3o anal\u00edtica entre o que \u00e9 o incremento de n\u00edvel e o que \u00e9 a estrutura da desigualdade de oportunidades \u00e9 muito relevante para entender como se mede o alcance e o efeito da implementa\u00e7\u00e3o e da expans\u00e3o do sistema educa\u00e7\u00e3o sobre a estrutura de oportunidades de uma dada sociedade. Essa agenda \u00e9 muito bem resolvida do ponto de vista emp\u00edrico, \u00e9 uma agenda sofisticada e com avan\u00e7os metodol\u00f3gicos muito significativos. Ela emergiu em um debate antes dominado por an\u00e1lises que levavam em considera\u00e7\u00e3o o alcance educacional dos jovens, o ac\u00famulo de escolariza\u00e7\u00e3o atrav\u00e9s de anos de estudo. A estrutura\u00e7\u00e3o do sistema de educa\u00e7\u00e3o dos pa\u00edses fez com que o n\u00edvel m\u00e9dio de escolariza\u00e7\u00e3o das pessoas subisse, porque n\u00e3o tinha escolariza\u00e7\u00e3o antes. Ent\u00e3o, a literatura sobre alcance educacional fazia uma defesa da diminui\u00e7\u00e3o das desigualdades educacionais. Por meio de an\u00e1lises que levavam em considera\u00e7\u00e3o esse indicador de conclus\u00e3o de anos de estudos, chegava a conclus\u00f5es question\u00e1veis com rela\u00e7\u00e3o \u00e0 diminui\u00e7\u00e3o dessas desigualdades porque supunha que, se a escolariza\u00e7\u00e3o de todo mundo crescia, a diferen\u00e7a entre a escolariza\u00e7\u00e3o de brancos e negros, por exemplo, diminu\u00eda. Ser\u00e1 que isso quer dizer diminui\u00e7\u00e3o de desigualdade? Quando algu\u00e9m fala que a desigualdade est\u00e1 diminuindo, o soci\u00f3logo faz tudo, do ponto de vista emp\u00edrico, para testar essa suposi\u00e7\u00e3o, para desafiar.<\/p>\n

O\u00a0artigo fundamental \u00e9 de 1981<\/a>, de Robert Mare, que reage, em certa medida, a essa literatura que na d\u00e9cada de 70 abordava o incremento do n\u00edvel m\u00e9dio do alcance educacional das pessoas afirmando haver diminui\u00e7\u00e3o das desigualdades. No fim da d\u00e9cada de 70 tinha uma profus\u00e3o de pessoas argumentando que havia ocorrido diminui\u00e7\u00e3o das desigualdades, frequentemente usando esse indicador espec\u00edfico. Mare reage \u00e0s pesquisas sobre alcance educacional por ver que ela n\u00e3o era sens\u00edvel, do ponto de vista da an\u00e1lise emp\u00edrica, \u00e0 distin\u00e7\u00e3o entre o incremento geral dos n\u00edveis de escolariza\u00e7\u00e3o da popula\u00e7\u00e3o e a estrutura das desigualdades. Usava-se uma mesma r\u00e9gua para medir momentos muito diferentes do sistema educacional e isso levava a conclus\u00f5es n\u00e3o muito robustas.<\/p>\n

Esse debate \u00e9 interessante porque mostra como avan\u00e7os metodol\u00f3gicos permitem avan\u00e7os te\u00f3ricos e anal\u00edticos de f\u00f4lego. Ent\u00e3o, nesse artigo de 1981, Mare se pergunta: essa literatura tem argumentado em favor da diminui\u00e7\u00e3o das desigualdades, mas ser\u00e1 que h\u00e1 uma mudan\u00e7a no princ\u00edpio de aloca\u00e7\u00e3o das pessoas entre os n\u00edveis de ensino? Ou seja, ser\u00e1 que o princ\u00edpio de classe, que estava estabelecido na literatura desde a d\u00e9cada de 60, deixou de operar ou ser\u00e1 que a gente est\u00e1 medindo errado o efeito desse princ\u00edpio? Ent\u00e3o, o que ele prop\u00f5e \u00e9 uma solu\u00e7\u00e3o de natureza metodol\u00f3gica. Ele era estat\u00edstico de forma\u00e7\u00e3o, com doutorado na sociologia demogr\u00e1fica americana. Esse artigo de 1981 teve um impacto gigantesco na sociologia. Ao inv\u00e9s de olhar a associa\u00e7\u00e3o entre origem e destino usando uma vari\u00e1vel cont\u00ednua, a escolariza\u00e7\u00e3o das pessoas, que n\u00e3o faz discrimina\u00e7\u00e3o entre os n\u00edveis de ensino, ele passa a olhar como a associa\u00e7\u00e3o entre origem social e destino escolar se dava dentro dos n\u00edveis de ensino.<\/p>\n

Para fazer isso, ele \u201cpica\u201d a trajet\u00f3ria educacional dos jovens. Ele n\u00e3o vai medir a escolariza\u00e7\u00e3o das pessoas pelo ac\u00famulo de anos de escolariza\u00e7\u00e3o formal e classificar em nove ou oito anos de escolariza\u00e7\u00e3o. Ele vai medir a escolariza\u00e7\u00e3o das pessoas de acordo com o que ele chama de modelo de progress\u00e3o, no qual acontece uma \u201cmortalidade\u201d da popula\u00e7\u00e3o. Primeiro s\u00e3o consideradas todas as crian\u00e7as de uma determinada coorte que chegam aos 5 anos e, portanto, se tornam eleg\u00edveis \u00e0 escolariza\u00e7\u00e3o no ensino b\u00e1sico, na educa\u00e7\u00e3o infantil. Da\u00ed se observa, no pr\u00f3ximo ano, o quanto daquela popula\u00e7\u00e3o ficou para tr\u00e1s. Assim sucessivamente, observa-se a associa\u00e7\u00e3o entre a origem educacional das pessoas e o destino educacional delas em cada ponto da progress\u00e3o educacional. Em seguida, \u00e9 constru\u00edda uma hip\u00f3tese sobre a variabilidade do efeito de classe sobre essa progress\u00e3o. Mare levantou a lebre que talvez o efeito da classe social, ou efeito da ra\u00e7a, em suma, o efeito de caracter\u00edsticas herdadas seria variante dependendo do n\u00edvel de escolariza\u00e7\u00e3o que a gente est\u00e1 olhando. Essa hip\u00f3tese n\u00e3o era pass\u00edvel de ser sustentada com a formula\u00e7\u00e3o emp\u00edrica daquela literatura anterior, porque a suposi\u00e7\u00e3o de modelos lineares \u00e9 a suposi\u00e7\u00e3o de linearidade das rela\u00e7\u00e3o entre X e Y, e um dos Y era o ac\u00famulo de escolariza\u00e7\u00e3o formal que n\u00e3o discriminava o avan\u00e7o das pessoas dentro dos diversos degraus do sistema educacional.<\/p>\n

Essa foi uma grande sacada, de natureza metodol\u00f3gica, que fez a gente avan\u00e7ar teoricamente, porque levanta a hip\u00f3tese que o efeito da classe n\u00e3o \u00e9 linear, mas varia dependendo do n\u00edvel educacional para o qual eu olho. Mare prop\u00f4s uma representa\u00e7\u00e3o muito mais precisa da estrutura de oportunidades e, portanto, da estrutura de desigualdades na progress\u00e3o educacional em quaisquer sistemas educacionais. Ele tem esse m\u00e9rito tamb\u00e9m da generalidade, qualquer sistema educacional do mundo pode ser analisado nesses termos. Ent\u00e3o, foi aberta uma possibilidade muito rica de compara\u00e7\u00f5es internacionais.<\/p>\n

Portal IDeA: Dessas compara\u00e7\u00f5es foram constru\u00eddas as grandes hip\u00f3teses interpretativas.<\/strong><\/p>\n

Murillo Brito:<\/strong>\u00a0A principal hip\u00f3tese, que n\u00e3o \u00e9 forte, mas \u00e9 uma suposi\u00e7\u00e3o da qual qualquer parte desses trabalhos parte, \u00e9 a suposi\u00e7\u00e3o de que h\u00e1 uma associa\u00e7\u00e3o entre a origem social das pessoas e o destino educacional delas. Nesse trabalho seminal de 1981, Mare demonstra que o efeito da classe, o efeito da origem social, varia dependendo do n\u00edvel educacional do qual a gente fala. Quando a gente fala da educa\u00e7\u00e3o b\u00e1sica, dos primeiros 4 anos de escolariza\u00e7\u00e3o, ele descobre que o efeito da classe nesse n\u00edvel nos EUA n\u00e3o existe. O que significa isso? Que todo mundo entrou, mas o efeito da classe come\u00e7a aparecer da\u00ed para frente. Nem todo mundo que entrou consegue passar para o pr\u00f3ximo n\u00edvel e parte da explica\u00e7\u00e3o \u00e9 o efeito da classe. Em seguida, esse efeito vai variando \u00e0 medida que voc\u00ea vai subindo em n\u00edveis educacionais. Em 1986, o Nelson do Valle Silva traz isso para o Brasil e publica o primeiro artigo sobre estratifica\u00e7\u00e3o educacional.<\/a><\/p>\n

Em 1993, Adrian Raftery e Michael Hout publicam um\u00a0artigo absolutamente central<\/a>\u00a0nessa agenda, no qual eles prop\u00f5em a hip\u00f3tese da desigualdade maximamente mantida para explicar essa rela\u00e7\u00e3o entre a expans\u00e3o do sistema educacional e as desigualdades, ou seja, para explicar a estrutura das oportunidades educacionais que deriva dessa expans\u00e3o. Eles estudam o caso muito espec\u00edfico da Irlanda, mas algumas suposi\u00e7\u00f5es gerais tiveram repercuss\u00e3o em todos os testes emp\u00edricos nacionais e internacionais. A Irlanda, na d\u00e9cada de 60, aboliu o pagamento de matr\u00edcula, transformando o sistema em um sistema totalmente p\u00fablico. Ent\u00e3o, tinha uma coorte que estava sob a opera\u00e7\u00e3o de um sistema que envolvia um pagamento de mensalidades e, de uma hora para outra, foi aprovada essa lei que pretendia diminuir a desigualdade de oportunidades, na Irlanda. A coorte seguinte foi exposta a um sistema educacional que n\u00e3o tinha cobran\u00e7a de mensalidade, nenhum custo para as fam\u00edlias manterem as crian\u00e7as no sistema educacional. Isso foi uma a\u00e7\u00e3o pol\u00edtica que tinha como objetivo a expans\u00e3o do sistema educacional, mas garantindo equidade. \u00c9 uma suposi\u00e7\u00e3o sustent\u00e1vel. Se ningu\u00e9m tem que pagar o sistema, ent\u00e3o eu assumo que todo mundo vai entrar e a desigualdade vai sumir. Entretanto, para soci\u00f3logos, isso \u00e9 uma quest\u00e3o emp\u00edrica.<\/p>\n

Nesse texto de 1993, Raffery e Hout v\u00e3o testar empiricamente essa suposi\u00e7\u00e3o. Eles v\u00e3o analisar se a suspens\u00e3o da cobran\u00e7a de taxas no sistema educacional diminui ou aumenta a desigualdade. Eles chegaram a uma conclus\u00e3o completamente contraintuitiva. Descobriram, na Irlanda, os n\u00edveis de desigualdade aumentaram imediatamente depois da aboli\u00e7\u00e3o da cobran\u00e7a de taxas e s\u00f3 foram diminuir posteriormente. Diante dessa constata\u00e7\u00e3o eles se perguntaram: por que uma pol\u00edtica claramente voltada para expans\u00e3o de oportunidades educacionais promoveu o aumento na desigualdade? Para respond\u00ea-la, \u00e9 preciso fazer uma distin\u00e7\u00e3o anal\u00edtica entre a estrutura da expans\u00e3o e a estrutura das oportunidades educacionais. Eles viram que o que acontecia \u00e9 que as oportunidades educacionais dispon\u00edveis eram apropriadas em velocidades distintas por pessoas de classes diferentes. O que aconteceu na Irlanda foi que os jovens de n\u00edvel socioecon\u00f4mico mais alto se apropriaram em maior \u201cvelocidade\u201d dessas vagas, de modo a frequ\u00eancia deles disparou muito mais rapidamente que de outras classes. Em um primeiro momento, ent\u00e3o, a desigualdade aumentou.<\/p>\n

Eles nomearam esse fen\u00f4meno de a hip\u00f3tese da desigualdade maximamente mantida, segundo a qual, sempre que houver um incremento das desigualdades de oportunidade em um certo n\u00edvel educacional, primeiro ocorrer\u00e1 um incremento nos n\u00edveis de desigualdade at\u00e9 o que chamam de ponto de satura\u00e7\u00e3o, no qual todos os jovens de origem privilegiada se apropriaram de uma vaga nesse n\u00edvel de ensino. S\u00f3 a partir da\u00ed \u00e9 que as desigualdades v\u00e3o diminuir nesse dado n\u00edvel. Entretanto, elas s\u00e3o deslocadas para a etapa seguinte da escolariza\u00e7\u00e3o, na qual os jovens das classes mais altas passar\u00e3o a se apropriar primeiro das oportunidades. Essa \u00e9 uma hip\u00f3tese super c\u00e9lebre, que foi testada em contexto nacionais, inclusive no Brasil, e em compara\u00e7\u00f5es internacionais. \u00c9 contraintuitivo, mas faz todo o sentido dizer que processos de expans\u00e3o educacional n\u00e3o v\u00e3o promover, em um primeiro momento, diminui\u00e7\u00e3o de desigualdades de oportunidades educacionais.<\/p>\n

Portal IDeA: H\u00e1 tamb\u00e9m uma outra hip\u00f3tese forte, \u00e0s vezes confirmada, \u00e0s vezes n\u00e3o, segundo a qual, as desigualdades s\u00e3o declinantes quando se observa uma dada coorte no tempo, ao longo das etapas da escolariza\u00e7\u00e3o \u2013 neste caso, portanto, n\u00e3o se trata da compara\u00e7\u00e3o de cortes, mas intracoorte. Ela tamb\u00e9m faz sentido, por causa do efeito da hiper-sele\u00e7\u00e3o. Os hiper selecionados das classes mais baixas passam a competir com os subselecionados e por isso as chances de conclus\u00e3o das etapas seguintes, entre os sobreviventes no sistema, v\u00e3o convergindo.<\/strong><\/p>\n

Murillo Brito:<\/strong>\u00a0Esse fen\u00f4meno foi observado no artigo seminal do Mare e ficou conhecido na literatura como a hip\u00f3tese dos coeficientes declinantes. Isto \u00e9, quanto mais avan\u00e7ada for a transi\u00e7\u00e3o educacional para a qual voc\u00ea est\u00e1 olhando, menor tende a ser o efeito da origem social sobre essa progress\u00e3o. Essa \u00e9 uma hip\u00f3tese um pouco mais controversa. Tem um\u00a0artigo de 1998<\/a>\u00a0do economista James Heckamn, no qual ele joga por terra essa hip\u00f3tese por raz\u00f5es t\u00e9cnicas. Ele sustenta que haveria uma especificidade desse modelo log\u00edstico sequencial usado para estimar esses efeitos de classe que faz com que essa conclus\u00e3o seja menos robusta. Nesse modelo, n\u00e3o se observa a classe social do aluno em cada ponto da progress\u00e3o educacional dele, que pode mudar. Ao contr\u00e1rio, continua-se a usar uma medida de classe social definida l\u00e1 atr\u00e1s, em etapas anteriores, para medir toda a progress\u00e3o educacional posterior dos alunos.A hip\u00f3tese dos coeficientes declinantes foi mais questionada na literatura do que a hip\u00f3tese da desigualdade maximamente mantida, embora essa \u00faltima tamb\u00e9m tenha sido problematizada. No in\u00edcio desse debate, a hip\u00f3tese dos coeficientes declinantes foi interpretada de duas maneiras. Uma dizia que o efeito da origem social de fato declina quando se avan\u00e7a na escolariza\u00e7\u00e3o e, por isso, na conclus\u00e3o de uma etapa da escolariza\u00e7\u00e3o – por exemplo na conclus\u00e3o do ensino m\u00e9dio para entrar no ensino superior -, considerando os que chegaram at\u00e9 ali, a origem social das pessoas n\u00e3o seria t\u00e3o relevante assim. Outra dizia que poderia estar ocorrendo um efeito de atributos n\u00e3o-observ\u00e1veis; ou seja, poderia ser que a habilidade das pessoas, que n\u00e3o \u00e9 medida por esses modelos log\u00edsticos sequenciais, fosse uma vari\u00e1vel explicativa de por que certas pessoas avan\u00e7am na escolariza\u00e7\u00e3o e outras n\u00e3o. A quest\u00e3o das vari\u00e1veis n\u00e3o-observ\u00e1veis \u00e9 absolutamente nevr\u00e1lgica, um buraco negro nessa literatura, porque essa hip\u00f3tese dos coeficientes declinantes \u00e9 toda fundamentada em certas suposi\u00e7\u00f5es funcionais nos modelos estat\u00edsticos, e uma suposi\u00e7\u00e3o sobre os n\u00e3o-observ\u00e1veis. Os especialistas em estat\u00edstica e econometria sustentam que esse artigo do Heckman tem argumentos muito robustos para desacreditar a hip\u00f3tese dos coeficientes declinantes. O que n\u00e3o quer dizer, para mim, que essa seja uma hip\u00f3tese de todo dispens\u00e1vel. Ela falta de algo importante, pois h\u00e1 par\u00e2metros de seletividade que a gente precisa entender e que fazem com que o problema da progress\u00e3o intracoorte continue sendo relevante.<\/p>\n

Do ponto de vista emp\u00edrico, isso se verifica, acontece de fato. Escapando um pouco da hip\u00f3tese dos coeficientes declinantes e delimitando um problema mais abrangente sobre quais os fatores que definem a \u201csobreviv\u00eancia\u201d intracoorte ao longo da progress\u00e3o educacional, percebemos que as popula\u00e7\u00f5es v\u00e3o diminuindo \u00e0 medida que a gente vai progredindo no sistema educacional e a gente precisa entender que fatores explicam essa diminui\u00e7\u00e3o. Ainda que essa hip\u00f3tese tenha ca\u00eddo relativamente em desuso, eu n\u00e3o acho que o problema caiu ou diminuiu de import\u00e2ncia. Eu acho que a gente precisa ser capaz de explorar e entender melhor analiticamente esse fen\u00f4meno.<\/p>\n

O teste dessa hip\u00f3tese contribuiu para a compreens\u00e3o do que acontece no sistema educacional brasileiro. Tem um\u00a0artigo de 2005,<\/a>\u00a0escrito pela Daniele Cireno Fernandes, minha orientadora no mestrado, que \u00e9 muito interessante porque mostra uma varia\u00e7\u00e3o, quase exclusivamente brasileira, no teste dessa hip\u00f3tese dos coeficientes declinantes. Ela demonstra que, ao inv\u00e9s de diminuir, o efeito da ra\u00e7a sobre a entrada no ensino superior aumenta em rela\u00e7\u00e3o ao efeito da ra\u00e7a sobre a conclus\u00e3o do ensino m\u00e9dio. A hip\u00f3tese dos coeficientes declinantes faria supor que o efeito da ra\u00e7a declinaria na medida que a gente vai avan\u00e7ando na progress\u00e3o educacional.<\/p>\n

Ent\u00e3o, ainda que eu reconhe\u00e7a os problemas funcionais e as fragilidades emp\u00edricas dessa hip\u00f3tese, eu ainda a considero absolutamente relevante para gente entender a estrutura de oportunidades no acesso ao ensino superior no Brasil. Considero que esse \u00e9 um argumento de natureza pol\u00edtica absolutamente poderoso para sustentar pol\u00edticas de inclus\u00e3o espec\u00edficas no ensino superior. N\u00e3o \u00e9 poss\u00edvel que para todos os pa\u00edses do mundo o efeito da classe decline na coorte \u00e0 medida que voc\u00ea avan\u00e7a nas etapas da escolariza\u00e7\u00e3o e que, no Brasil, o efeito de ra\u00e7a sobre o acesso \u00e0 educa\u00e7\u00e3o superior aumente. \u00c9 um achado muito relevante na minha opini\u00e3o.<\/p>\n

Portal IDeA: H\u00e1 ainda uma outra hip\u00f3tese importante, que dialoga com a da desigualdade maximamente mantida, a hip\u00f3tese da desigualdade efetivamente mantida. Com ela, n\u00e3o estamos falando mais s\u00f3 de origem e destino, mas da diferencia\u00e7\u00e3o dos percursos educacionais em etapas que j\u00e1 passaram por uma maior democratiza\u00e7\u00e3o.<\/strong><\/p>\n

Murillo Brito:<\/strong>\u00a0O passo seguinte dessa agenda de pesquisa sobre a estratifica\u00e7\u00e3o educacional foi a formula\u00e7\u00e3o desse problema nos termos da desigualdade maximamente mantida. Esse termo foi primeiramente formulado em um\u00a0artigo do Samuel Lucas<\/a>, um pesquisador americano. Em um artigo dele de 2001 na\u00a0American Journal of Sociology<\/em>, ele apresenta a hip\u00f3tese da desigualdade efetivamente mantida. Segundo Lucas, tem um problema na correla\u00e7\u00e3o que essa literatura tem utilizado desde sempre, pois ela s\u00f3 faz a discrimina\u00e7\u00e3o entre progress\u00e3o e n\u00e3o-progress\u00e3o escolar; ou seja, ela s\u00f3 diferencia se a pessoa passa para o pr\u00f3ximo n\u00edvel ou n\u00e3o. \u00c9 um problema zero ou um, de natureza dicot\u00f4mica. Ent\u00e3o, ao inv\u00e9s dele abordar a progress\u00e3o escolar como uma vari\u00e1vel dicot\u00f4mica, ela aborda a progress\u00e3o como uma vari\u00e1vel nominal, qualitativa, categ\u00f3rica. N\u00e3o est\u00e1 errado dizer que a pessoa continua no sistema educacional ou n\u00e3o continua, mas ao s\u00f3 tratar dessas duas situa\u00e7\u00f5es, perde-se muita coisa de vista.<\/p>\n

As pessoas continuam em segmentos diferentes na educa\u00e7\u00e3o b\u00e1sica e em \u00e1reas diferentes no ensino superior. Nos Estados Unidos isso fica menos claro porque o sistema \u00e9 majoritariamente p\u00fablico, mas ainda assim voc\u00ea tem caminhos diferentes que as pessoas podem seguir, voc\u00ea pode seguir um ensino acad\u00eamico ou t\u00e9cnico e isso faz diferen\u00e7a. Existem diferen\u00e7as de prest\u00edgio entre esses\u00a0tracks<\/em>. Lucas est\u00e1 dizendo que existe uma diferen\u00e7a de prest\u00edgio entre esses ramos do sistema educacional. Como h\u00e1 diferencia\u00e7\u00e3o no sistema, n\u00e3o existe o ponto de satura\u00e7\u00e3o suposto pela hip\u00f3tese da desigualdade maximamente mantida porque as vagas nos\u00a0tracks<\/em>\u00a0mais prestigiosos s\u00e3o restritas. O que acontece \u00e9 que jovens origin\u00e1rios de fam\u00edlias privilegiadas t\u00eam mais condi\u00e7\u00f5es de se apropriarem n\u00e3o s\u00f3 das vagas que se apresentam dispon\u00edveis, como diziam Raftery e Hout l\u00e1 em 93, mas das vagas mais valorizadas. Como essas vagas mais prestigiosas s\u00e3o restritas, n\u00e3o existe sistema educacional no mundo que seja absolutamente homog\u00eaneo, ent\u00e3o, a desigualdade de classe continuar\u00e1 operando enquanto houver diferencia\u00e7\u00e3o institucional, mesmo em segmentos escolares democratizados.<\/p>\n

A diferencia\u00e7\u00e3o institucional, a segmenta\u00e7\u00e3o institucional, \u00e9 uma dimens\u00e3o importante da desigualdade de oportunidades educacionais. Continuo achando que o problema da rela\u00e7\u00e3o entre a origem e o destino educacional continua de p\u00e9, mas Lucas muda a maneira de operar a no\u00e7\u00e3o de destino. Ele nem mexe tanto na no\u00e7\u00e3o de origem, porque continua medindo isso com a escolariza\u00e7\u00e3o da m\u00e3e, do pai, a classe de origem com 15 anos, mas ele promove uma distin\u00e7\u00e3o. Do ponto de vista emp\u00edrico operacional, ele transforma um resultado dicot\u00f4mico em um resultado qualitativo, um resultado categ\u00f3rico. Essa transforma\u00e7\u00e3o te\u00f3rica n\u00e3o acontece de gra\u00e7a. Esse \u00e9 um artigo de 2001, um momento em que, em pa\u00edses desenvolvidos, o processo de expans\u00e3o e de universaliza\u00e7\u00e3o da educa\u00e7\u00e3o fundamental j\u00e1 estava consolidado. Esses estudos n\u00e3o estavam mostrando mais a desigualdade de classe nos n\u00edveis b\u00e1sicos de educa\u00e7\u00e3o. Lucas se perguntou, ent\u00e3o, se isso significava dizer que n\u00e3o tem mais desigualdade e demonstra continua havendo desigualdade.<\/p>\n

A partir de sua pesquisa, a diferencia\u00e7\u00e3o do sistema passa a ser um argumento mais importante para a gente entender esses par\u00e2metros de estrutura\u00e7\u00e3o das desigualdades de oportunidade. Ele faz isso nesse artigo para falar sobre o ensino m\u00e9dio, mas isso \u00e9 muito poderoso para pensar a educa\u00e7\u00e3o no n\u00edvel superior porque as carreiras no n\u00edvel superior s\u00e3o\u00a0tracks<\/em>. Ent\u00e3o esse argumento ganha for\u00e7a no debate \u00e0 medida que a quest\u00e3o a ser discutida passa crescentemente a ser estabelecida nas estruturas mais elevadas do sistema educacional, no n\u00edvel m\u00e9dio, e, mais em particular, no n\u00edvel superior.<\/p>\n

Portal IDeA: Lucas ajuda a pensar o caso brasileiro?<\/strong><\/p>\n

Murillo Brito<\/strong>: Eu n\u00e3o queria perder a oportunidade de falar sobre o caso brasileiro. Entre n\u00f3s, a segmenta\u00e7\u00e3o apontada por Lucas fica muito evidente na separa\u00e7\u00e3o entre setor p\u00fablico e privado. Mesmo se eu zerar o custo do setor privado, o que n\u00e3o vai acontecer, esse segmento privilegiado da sociedade vai se apropriar das vagas em maior velocidade e o setor privado ser\u00e1 apropriado primeiro pelas classes privilegiadas. A hip\u00f3tese de Lucas vem sendo trazida cada vez mais para o caso brasileiro. As pessoas est\u00e3o querendo discutir qualitativamente, pensar a progress\u00e3o educacional entre segmentos diferentes. O resultado no setor privado \u00e9 diferente do setor p\u00fablico. Isso tem consequ\u00eancias, isso \u00e9 muito pertinente \u00e0 discuss\u00e3o cl\u00e1ssica da sociologia da educa\u00e7\u00e3o.<\/p>\n

As suposi\u00e7\u00f5es cl\u00e1ssicas da sociologia da reprodu\u00e7\u00e3o educacional continuam atual\u00edssimas. Eu diria que hoje quando voc\u00ea vai olhar os trabalhos sobre estratifica\u00e7\u00e3o educacional, a maior parte deles parte dessa suposi\u00e7\u00e3o do Lucas. O que significa que a gente tem que ter medidas para isso, n\u00e3o basta s\u00f3 saber se a crian\u00e7a est\u00e1 na escola ou n\u00e3o est\u00e1, \u00e9 preciso saber onde ela est\u00e1. N\u00e3o basta saber em que setor do ensino superior as pessoas estudam, mas para qual carreira elas v\u00e3o. A desigualdade pode estar a\u00ed agora. O problema mudou porque a gente teve um processo de expans\u00e3o muito significativo no Brasil.<\/p>\n

Portal IDeA: Queria te ouvir mais sobre o caso brasileiro. A gente tem uma sociedade hiper desigual e o sistema de ensino tem colaborado para reproduzir essa desigualdade. O ensino superior foi expandido no s\u00e9culo XIX para formar localmente a elite dirigente e continuou a cumprir esse papel no s\u00e9culo XX. O nosso sistema de educa\u00e7\u00e3o b\u00e1sica \u00e9 tardio, h\u00e1 reformas importantes na Ia Rep\u00fablica, mas ele s\u00f3 vai ser estruturado efetivamente a partir do per\u00edodo Vargas. O Censo Demogr\u00e1fico de 1950 mostrou que metade da popula\u00e7\u00e3o brasileira n\u00e3o era alfabetizada. Esse sistema passou por uma expans\u00e3o intensa at\u00e9 os anos 1990. Ent\u00e3o, se a gente olhar as gera\u00e7\u00f5es anteriores, efetivamente houve ganhos de escolariza\u00e7\u00e3o. De modo geral, quando se compara a escolariza\u00e7\u00e3o das gera\u00e7\u00f5es mais novas com as dos pais, av\u00f3s e bisav\u00f3s, nota-se que as fam\u00edlias s\u00e3o mais escolarizadas. O que est\u00e1 acontecendo, em termos de desigualdades, nesse sistema que se expande e amplia oportunidades?<\/strong><\/p>\n

Murillo Brito:<\/strong>\u00a0Em toda fam\u00edlia tem algu\u00e9m que \u201cah, porque quando eu era crian\u00e7a eu estudava na escola p\u00fablica! Porque a escola p\u00fablica l\u00e1 na d\u00e9cada de 50\u2026\u201d. Meus pais estudaram em escolas p\u00fablicas em Belo Horizonte, as melhores escolas eram p\u00fablicas. Eu uso essa anedota para que as pessoas comecem a ter uma no\u00e7\u00e3o um pouco al\u00e9m do senso comum, que est\u00e1 muito presente no debate p\u00fablico. Chega a haver quem diga \u201ca gente n\u00e3o deve investir em educa\u00e7\u00e3o p\u00fablica no Brasil, porque a educa\u00e7\u00e3o p\u00fablica no Brasil \u00e9 ruim\u201d. Eu acho isso uma viol\u00eancia.<\/p>\n

O sistema da escola p\u00fablica na d\u00e9cada de 1950 era de fato melhor, mas ele atendia a uma parcela infinitamente menor de pessoas da popula\u00e7\u00e3o. Da d\u00e9cada de 50 para c\u00e1, o sistema educacional brasileiro se expandiu assombrosamente. Um sistema que tinha 1 milh\u00e3o de pessoas na d\u00e9cada de 50 passa a ter mais de 10 milh\u00f5es, 12 milh\u00f5es de estudantes nas d\u00e9cadas de 80 e 90. Isso \u00e9 bom poque estamos incorporando toda a popula\u00e7\u00e3o ao sistema educacional. \u00c9 obvio que voc\u00ea precisa de um volume de recursos muito maior do que precisava na d\u00e9cada de 50 e que voc\u00ea lida com uma popula\u00e7\u00e3o de n\u00edvel socioecon\u00f4mico necessariamente inferior ao da popula\u00e7\u00e3o que ocupava o sistema de educa\u00e7\u00e3o p\u00fablico na d\u00e9cada de 50. Isso \u00e9 um ponto muito central para a gente entender educa\u00e7\u00e3o enquanto pol\u00edtica p\u00fablica.<\/p>\n

O que a gente espera de um sistema educacional? Que ele seja capaz de transmitir conhecimento para as pessoas, que elas tenham um aproveitamento de aprendizagem a partir desse conhecimento. Mas a gente j\u00e1 sabe que esse aproveitamento de aprendizagem \u00e9 uma fun\u00e7\u00e3o da posi\u00e7\u00e3o social das pessoas, a gente sabe que o n\u00edvel socioecon\u00f4mico das pessoas tem efeito sobre o resultado educacional delas. Ora, a gente est\u00e1 construindo um sistema que tem cada vez mais pessoas de classes populares. Ent\u00e3o, \u00e9 de se esperar que o resultado educacional de um sistema que se expande, principalmente incorporando pessoas dos estratos menos favorecidos da popula\u00e7\u00e3o, v\u00e1 diminuir. O sucesso de uma pol\u00edtica educacional nesse momento de expans\u00e3o, na minha vis\u00e3o, n\u00e3o deve ser medido pelo resultado de aprendizagem, mas pelo resultado de inclus\u00e3o. Eu acho que isso devia ser a pauta e foi.<\/p>\n

At\u00e9 os anos 1990, a nossa necessidade era de incorpora\u00e7\u00e3o das pessoas aos sistemas de ensino. Isso n\u00e3o quer dizer que a gente n\u00e3o deveria ter investido em qualidade durante esse tempo, \u00e9 \u00f3bvio que as coisas n\u00e3o s\u00e3o excludentes. Isso n\u00e3o \u00e9 um tema de natureza dicot\u00f4mica. N\u00f3s estamos vendo isso acontecer, a institui\u00e7\u00e3o do sistema de avalia\u00e7\u00e3o se deu em um momento de expans\u00e3o e a gente tem ganhos de qualidade nesse per\u00edodo, mesmo incluindo as pessoas. Eu acho muito importante para entender a hist\u00f3ria da pol\u00edtica p\u00fablica de educa\u00e7\u00e3o no Brasil, a hist\u00f3ria de expans\u00e3o do sistema no Brasil enquanto uma hist\u00f3ria de inclus\u00e3o em primeiro lugar e a hist\u00f3ria de um sistema que lidou com um processo de mudan\u00e7a demogr\u00e1fica que lhe imp\u00f4s desafios de tal natureza sobre os quais eu tenho d\u00favidas se outros contextos nacionais passaram.<\/p>\n

Nosso sistema conseguiu aumentar os n\u00edveis de inclus\u00e3o escolar de uma popula\u00e7\u00e3o crescente. Eu mesmo fa\u00e7o parte da coorte de nascidos em 1981, a maior da hist\u00f3ria do pa\u00eds. Isso quer dizer que nunca nasceu tanta gente como nasceu em 81. 81 \u00e9 o \u00e1pice, mas o que aconteceu desde a d\u00e9cada de 50 foi um crescimento muito significativo. As pessoas tiveram muito mais filhos, houve muito mais gente nascendo. Ent\u00e3o, aumentou a popula\u00e7\u00e3o eleg\u00edvel e, ao mesmo tempo, o sistema se expandiu de modo a produzir uma inclus\u00e3o escolar crescente. O que significa que o sistema educacional brasileiro n\u00e3o s\u00f3 foi capaz de incluir uma propor\u00e7\u00e3o maior das pessoas que estavam em idade escolar, como o volume dessa popula\u00e7\u00e3o \u00e9 cada vez maior. Incorporar 50% das crian\u00e7as em 1950 era muito diferente de incorporar 50% das crian\u00e7as em 1980. E, mesmo assim, a capacidade de incorpora\u00e7\u00e3o do sistema cresceu. Enfim, havia um desafio demogr\u00e1fico, um fator ex\u00f3geno \u00e0 din\u00e2mica do pr\u00f3prio sistema, que era um problema que o sistema educacional brasileiro tinha que lidar se quisesse aumentar os n\u00edveis de inclus\u00e3o e isso foi efetivado.<\/p>\n

Ent\u00e3o, chegamos \u00e0 d\u00e9cada de 90 atingindo a universalidade do acesso, em particular para crian\u00e7as de 7 aos 14 anos. Em 2000-2010 todas as crian\u00e7as em idade escolar estavam na escola. Portanto, a desigualdade de classe n\u00e3o tem mais efeito sobre a entrada no sistema e passa tamb\u00e9m a n\u00e3o ter efeito na conclus\u00e3o dos anos iniciais do Ensino Fundamental. Entre n\u00f3s, se verifica o princ\u00edpio da desigualdade maximamente mantida. Os dados do censo em 2010 mostram que a desigualdade de classe ainda operava na conclus\u00e3o dos anos finais do Ensino Fundamental. Ent\u00e3o, a gente consegue incorporar, mas n\u00e3o conseguiu segurar totalmente.<\/p>\n

Analisei os dados do censo entre 1960 e 2010. Historicamente, o que hoje \u00e9 a conclus\u00e3o dos anos finais do Ensino Fundamental era um momento muito significativo, no qual a seletividade de classe operava e cortava parte da popula\u00e7\u00e3o. \u00c9 em 2000-2010 que isso come\u00e7a a mudar um pouco, o que n\u00e3o significa que a gente chegue a patamares alt\u00edssimos, que possam ser chamados de universais, de conclus\u00e3o do Ensino Fundamental. Em 2010, a desigualdade de classe ainda operava nesse n\u00edvel.<\/p>\n

Portal IDeA: E quanto ao ensino m\u00e9dio?<\/strong><\/p>\n

Murillo Brito:<\/strong>\u00a0Participei de uma pesquisa para a Organiza\u00e7\u00e3o Internacional do Trabalho (OIT) chamada Transi\u00e7\u00e3o Escola Trabalho,<\/a>\u00a0publicada no final de 2018. Usamos dados de 2013 e verificamos que a maior parte dos jovens estava em vias de concluir o ensino fundamental. Vimos tamb\u00e9m que os jovens que conclu\u00edam o fundamental de fato entravam no ensino m\u00e9dio. A quest\u00e3o passou a ser principalmente a conclus\u00e3o do ensino m\u00e9dio. Eu diria que ao longo do processo de moderniza\u00e7\u00e3o e urbaniza\u00e7\u00e3o do pa\u00eds esse degrau da educa\u00e7\u00e3o fundamental e a entrada no ensino m\u00e9dio eram as principais barreiras que definiam a estrutura classista das oportunidades educacionais. Isso n\u00e3o \u00e9 t\u00e3o verdade de 2000 para frente, quando a barreira passa a ser fundamentalmente a conclus\u00e3o do ensino m\u00e9dio.<\/p>\n

Portal IDeA: A din\u00e2mica demogr\u00e1fica e a din\u00e2mica do pr\u00f3prio sistema s\u00e3o fundamentais para entender a expans\u00e3o e a distribui\u00e7\u00e3o de oportunidades educacionais.<\/strong><\/p>\n

Murillo Brito:<\/strong>\u00a0\u00c9 muito complexo entender educa\u00e7\u00e3o enquanto pol\u00edtica p\u00fablica. H\u00e1 movimentos populacionais e h\u00e1 a din\u00e2mica do pr\u00f3prio sistema. S\u00e3o processos complexos e n\u00e3o cabem em vis\u00f5es simplistas a respeito do problema. O resultado do processo de expans\u00e3o vai ser uma fun\u00e7\u00e3o da rela\u00e7\u00e3o entre a capacidade do sistema em incorporar pessoas e o volume populacional de pessoas que nascem, que \u00e9 um fator ex\u00f3geno ao sistema. A gente precisa entender que o resultado de um sistema educacional enquanto pol\u00edtica p\u00fablica s\u00f3 vai ser entendido, com um respeito m\u00ednimo \u00e0 complexidade do fen\u00f4meno, se a gente leva em considera\u00e7\u00e3o essas duas quest\u00f5es. \u00c9 uma pol\u00edtica e, portanto, eu preciso de dinheiro para botar a escola em p\u00e9, pagar professor, funcion\u00e1rios etc., e tenho que pensar isso em rela\u00e7\u00e3o ao volume populacional que vai entrar nessas escolas.<\/p>\n

O que aconteceu no Brasil \u00e9 que a gente teve um pico desse volume populacional no in\u00edcio da d\u00e9cada de 90 quando essas coortes enormes, as maiores da hist\u00f3ria do Brasil, est\u00e3o chegando nos anos finais do Ensino Fundamental. A partir da\u00ed o volume de pessoas diminui, tem cada vez menos crian\u00e7as para entrar no sistema educacional. N\u00e3o tenho d\u00favidas que eu sou uma pessoa voltada para a justi\u00e7a social, mas eu tamb\u00e9m sou voltado para a efici\u00eancia do gasto p\u00fablico. A gente pode n\u00e3o fechar as escolas, mas a gente vai ver menos crian\u00e7as precisando de escolas, isso vai acontecer e j\u00e1 est\u00e1 acontecendo, em particular, no ensino m\u00e9dio.<\/p>\n

No ensino m\u00e9dio n\u00f3s temos uma quest\u00e3o: se a gente observasse exclusivamente a din\u00e2mica demogr\u00e1fica para explicar a din\u00e2mica populacional do sistema dentro do ensino m\u00e9dio, a gente teria um decr\u00e9scimo muito maior no sistema de matr\u00edculas de uns 10 anos para c\u00e1. Se a gente considerasse que todo mundo que deveria estar no ensino m\u00e9dio estivesse no ensino m\u00e9dio, ou seja, que passasse do ensino fundamental para o m\u00e9dio, a gente teria uma diminui\u00e7\u00e3o do ensino m\u00e9dio, porque a popula\u00e7\u00e3o \u00e9 menor. Mas a gente tem resultados muito significativos nesse processo de expans\u00e3o educacional no caso brasileiro: a incorpora\u00e7\u00e3o de pessoas que j\u00e1 estavam no sistema. As bases populacionais est\u00e3o diminuindo ao longo do tempo, mas as matr\u00edculas do ensino m\u00e9dio diminuem menos que a base populacional porque estamos incorporando mais gente que estava no sistema e isso \u00e9 muito importante.<\/p>\n

A incorpora\u00e7\u00e3o de pessoas no sistema nos anos 80 passou a ser, nos anos 2000-2010, a incorpora\u00e7\u00e3o delas no ensino m\u00e9dio. A gente tem uma propor\u00e7\u00e3o maior de pessoas que entra no ensino m\u00e9dio por causa da corre\u00e7\u00e3o do fluxo educacional. Voc\u00ea tem mais gente que entra l\u00e1 atr\u00e1s no ensino fundamental e que est\u00e3o continuando mais do que elas continuavam, conseguido entrar mais no ensino m\u00e9dio do que conseguiam. Isso significa que acontece hoje no ensino m\u00e9dio algo similar ao que acontecia com a educa\u00e7\u00e3o b\u00e1sica na d\u00e9cada de 80, eu estou trazendo uma popula\u00e7\u00e3o que n\u00e3o estaria ali em outros cen\u00e1rios e que \u00e9 de n\u00edvel socioecon\u00f4mico predominantemente mais baixo. Isso vai ter um resultado nos indicadores de aprendizagem. O que \u00e9 mais surpreendente \u00e9 que a gente n\u00e3o tem diminui\u00e7\u00e3o nos n\u00edveis m\u00e9dios de profici\u00eancia. S\u00f3 n\u00e3o diminuir j\u00e1 \u00e9 um baita ganho, porque voc\u00ea est\u00e1 trazendo um monte de pessoas que tendem a reduzir os resultados m\u00e9dios.<\/p>\n

Essa \u00e9 uma discuss\u00e3o que eu acho absolutamente desinformada no debate p\u00fablico. As pessoas se colocam simplesmente a quest\u00e3o de se o indicador do Programa Internacional de Avalia\u00e7\u00e3o de Estudantes (PISA) aumentou ou diminuiu. \u00c9 claro que \u00e9 importante a gente pensar no resultado de aprendizagem. \u00c9 \u00f3bvio que a m\u00e9dia do resultado das aprendizagens \u00e9 importante, mas as pessoas precisam ter clareza a respeito da base populacional na qual a gente faz esse c\u00e1lculo. Do ponto de vista das pol\u00edticas p\u00fablicas educacionais, aumentar a base populacional na qual a gente faz esse c\u00e1lculo \u00e9 um ganho, um resultado bem sucedido da pol\u00edtica. Significa que a gente est\u00e1 conseguindo trazer mais gente e trazer mais gente \u00e9 importante. Diminuir a evas\u00e3o \u00e9 absolutamente crucial.<\/p>\n

Acompanhando a discuss\u00e3o recente sobre o Fundo de Manuten\u00e7\u00e3o e Desenvolvimento da Educa\u00e7\u00e3o B\u00e1sica (FUNDEB), eu acho \u00e0s vezes que as pessoas n\u00e3o t\u00eam clareza sobre o que est\u00e1 em jogo. Isso \u00e9 resultado de um investimento muito significativo e que deu um resultado muito importante. No m\u00ednimo, foi poss\u00edvel incorporar essas pessoas ao sistema. A taxa de transi\u00e7\u00e3o da educa\u00e7\u00e3o fundamental para o ensino m\u00e9dio s\u00f3 sobe e em bases populacionais que crescem ao longo do tempo. Isso \u00e9 muito significativo. Isso obviamente tem a ver com o FUNDEB como mecanismo de financiamento. Porque para isso precisa de dinheiro. Eu acho que, muitas vezes, essa dimens\u00e3o demogr\u00e1fica dos problemas educacionais n\u00e3o est\u00e1 colocada da maneira como deveria no debate p\u00fablico, n\u00e3o \u00e9 levada em considera\u00e7\u00e3o. A vis\u00e3o que domina no debate p\u00fablico \u00e9 uma vis\u00e3o de senso comum, segundo a qual a educa\u00e7\u00e3o p\u00fablica que havia no passado, no Brasil, era a melhor que tinha. \u00c9 \u00f3bvio! Al\u00e9m da sele\u00e7\u00e3o social que havia, o volume de recursos investido por aluno naquela \u00e9poca era infinitamente superior, porque voc\u00ea tinha muito menos alunos. Eu acho que tem certos elementos que a gente precisa trazer de forma mais sistem\u00e1tica para o debate, a gente precisa ter clareza como o sistema educacional brasileiro se colocou, e de p\u00e9, perante um desafio que eu n\u00e3o sei se outros pa\u00edses do mundo enfrentaram do mesmo tamanho. N\u00f3s temos uma popula\u00e7\u00e3o gigantesca e uma popula\u00e7\u00e3o super jovem na \u00e9poca.<\/p>\n

Portal IDeA: Gostaria que voc\u00ea comentasse os resultados do\u00a0artigo publicado na Cadernos de Pesquisa,\u00a0<\/a>em que voc\u00ea analisa os Censos Demogr\u00e1ficos de 1960 a 2010. Voc\u00ea mostra que as chances de conclus\u00e3o v\u00e3o aumentando para todas as classes sociais, mas n\u00e3o na mesma velocidade. A classe mais alta tem o maior ritmo. As classes m\u00e9dias em ocupa\u00e7\u00f5es manuais e n\u00e3o-manuais caminham juntas, em uma trajet\u00f3ria pr\u00f3xima. A classe mais baixa caminha mais lentamente. A nossa capacidade de atender as classes mais baixas ainda se mostra muito mais limitada. Esse \u00e9 um grupo no qual a chance de concluir o ensino fundamental n\u00e3o est\u00e1 completamente universalizada e que no ensino m\u00e9dio ainda est\u00e1 numa posi\u00e7\u00e3o muito mais desfavorecida.<\/strong><\/p>\n

Murillo Brito:<\/strong>\u00a0Eu acho que a for\u00e7a do argumento desse artigo \u00e9 o per\u00edodo de tempo que essa an\u00e1lise cobre. Ele mostra o que \u00e9 poss\u00edvel mostrar. Com o censo n\u00e3o \u00e9 poss\u00edvel fazer uma opera\u00e7\u00e3o da vari\u00e1vel de transi\u00e7\u00e3o e, portanto, fazer o modelo multinomial sequencial. A gente s\u00f3 consegue fazer o modelo logit sequencial, s\u00f3 consegue fazer a formula\u00e7\u00e3o dicot\u00f4mica do problema, saber se progrediu ou n\u00e3o progrediu. O artigo \u00e9 uma demonstra\u00e7\u00e3o de como a hip\u00f3tese da desigualdade maximamente mantida pode ser uma hip\u00f3tese interessante para entender a condi\u00e7\u00e3o hist\u00f3rica da acessibilidade do sistema educacional brasileiro. Em 2010, o ensino fundamental estava universalizado, mas observei que a barreira hist\u00f3rica da conclus\u00e3o do ensino fundamental continuava de p\u00e9 em pleno 2010. A desigualdade de classe continua existindo nesse ponto da progress\u00e3o educacional dos jovens e, portanto, a gente n\u00e3o deve ignorar isso. Entretanto, a conclus\u00e3o do ensino m\u00e9dio se tornou a principal barreira, o ponto no qual os efeitos de classe e de ra\u00e7a mais se demonstram.<\/p>\n

O acesso ao ensino superior \u00e9 ainda uma outra quest\u00e3o. O resultado que a gente observou para a educa\u00e7\u00e3o superior, em um momento que se falava muito da democratiza\u00e7\u00e3o de acesso ao ensino superior, mostra exatamente o que Raftery e o Hout observaram na Irlanda. Em um momento de expans\u00e3o muito significativa do ensino superior o que h\u00e1 \u00e9 um incremento na desigualdade de classe no acesso \u00e0 educa\u00e7\u00e3o superior. Tem mais gente? Sim. A gente saiu de 1 milh\u00e3o de pessoas em 91 para 7 milh\u00f5es em 2010. H\u00e1 um aumento muito significativo no n\u00famero de alunos e de institui\u00e7\u00f5es, um volume enorme de pessoas que passa a fazer ensino superior.<\/p>\n

Entretanto, o que esse artigo mostra \u00e9 que h\u00e1 um incremento na desigualdade de classe. Para cada preto pobre que entrou, entravam 3, 4 ricos a mais do que entravam antes. Isso n\u00e3o \u00e9 diminui\u00e7\u00e3o da desigualdade. A dimens\u00e3o pol\u00edtica desse argumento \u00e9 transversal. Argumentos sobre a democratiza\u00e7\u00e3o s\u00e3o muito perniciosos porque sugerem que a gente atingiu um ponto que n\u00e3o atingimos. A universidade no Brasil \u00e9 cada vez mais elitizada. Entre 2000 e 2010, que a gente achou que estava democratizando, n\u00e3o est\u00e1vamos. A gente estava aumentando a desigualdade, tal como a hip\u00f3tese da desigualdade maximamente mantida nos diz: quando voc\u00ea expande, as pessoas que t\u00eam melhores condi\u00e7\u00f5es de se apropriarem dessa expans\u00e3o far\u00e3o isso primeiro.<\/p>\n

Portal IDeA: Seus dados mostram que as classes mais altas aproveitam primeiro as oportunidades de acesso ao ensino superior. Um segundo grupo que se beneficia tamb\u00e9m \u00e9 o das classes m\u00e9dias de trabalho n\u00e3o-manual. Mas o dado mais impressionante \u00e9 a quase estabilidade da curva das classes mais baixas ao longo do per\u00edodo.<\/strong><\/p>\n

Murillo:<\/strong>\u00a0Isso \u00e9 um recado para os que advogam o argumento sobre a democratiza\u00e7\u00e3o da universidade. Que democratiza\u00e7\u00e3o \u00e9 essa que n\u00e3o muda praticamente nada as chances das pessoas realmente pobres de entrarem na universidade? \u00c9 um recado pol\u00edtico.<\/p>\n

Portal IDeA: Se a gente pode falar ent\u00e3o de uma democratiza\u00e7\u00e3o, ela est\u00e1 restrita a uma fra\u00e7\u00e3o das classes m\u00e9dias.<\/strong><\/p>\n

Murillo Brito:<\/strong>\u00a0Eu acho que a gente n\u00e3o pode falar em democratiza\u00e7\u00e3o do acesso ao ensino superior. Eu acho que a gente come\u00e7ou esse processo de expans\u00e3o e a cabe\u00e7a das pessoas que interpretam ele desse jeito \u00e9 a mesma dos gestores da Irlanda quando foi extinta a cobran\u00e7a de taxas. Eles n\u00e3o fizeram isso de m\u00e1 f\u00e9, mas \u00e9 uma interpreta\u00e7\u00e3o simplista da rela\u00e7\u00e3o entre acesso e popula\u00e7\u00e3o. Eu acho que \u00e9 um jeito muito pouco informado de se pensar essa quest\u00e3o. Eu sou um radical absoluto nesse argumento. A universidade brasileira continua elitizada. O que acontece \u00e9 que o incremento de acesso para as classes mais altas \u00e9 muito mais significativo do que o observado para as outras classes e a gente est\u00e1 aqui olhando para essa quest\u00e3o achando que n\u00f3s estamos democratizando\u2026 S\u00f3 pensamos assim porque sa\u00edmos de um patamar de elitiza\u00e7\u00e3o da universidade t\u00e3o brutal que qualquer micro mudan\u00e7a residual vai fazer com que as pessoas acreditem que houve democratiza\u00e7\u00e3o.<\/p>\n

Eu acho que a gente est\u00e1 s\u00f3 no in\u00edcio. Se \u00e9 que a gente vai aprofundar esse processo. A gente tem que lutar pelo que a gente conquistou at\u00e9 agora, para que esse processo continue, porque, por mais que eu seja cr\u00edtico com rela\u00e7\u00e3o \u00e0 maneira como as pessoas generalizam esse argumento para falar sobre o sistema educacional brasileiro como um todo, eu reconhe\u00e7o que, em particular nas universidades p\u00fablicas, a gente tem um aumento na diversidade do corpo discente. Esse aumento est\u00e1 muito longe de representar a popula\u00e7\u00e3o brasileira como um todo, mas o efeito das cotas sobre essa diversifica\u00e7\u00e3o \u00e9 muito significativo. A gente n\u00e3o pode perder isso. E n\u00e3o \u00e9 s\u00f3 uma quest\u00e3o de acessar o ensino superior, isso \u00e9 particularmente problem\u00e1tico porque importa e muito em que tipo de institui\u00e7\u00e3o e em que carreira se vai acessar e seguir. A\u00ed a hip\u00f3tese da desigualdade efetivamente mantida passa a ser uma hip\u00f3tese mais relevante. Em minha tese, mostro como a incorpora\u00e7\u00e3o dessas classes mais baixas no ensino superior se d\u00e1 basicamente no setor privado e fundamentalmente conjugada com trabalho. Ent\u00e3o n\u00f3s estamos criando popula\u00e7\u00f5es distintas de estudantes no ensino superior.<\/p>\n

H\u00e1 um trabalho recentemente publicado sobre jovens e acesso ao ensino superior no qual as autoras abordam o universo representacional dos jovens de classes menos privilegiadas. Primeiro mostram que a regulariza\u00e7\u00e3o do fluxo escolar e a incorpora\u00e7\u00e3o do acesso \u00e0 entrada na educa\u00e7\u00e3o superior passam a ser atualmente um mecanismo de demarca\u00e7\u00e3o institucional do ciclo de vida desses jovens. A escola passou a ter um poder muito significativo de organiza\u00e7\u00e3o do ciclo de vida desses jovens. Isso n\u00e3o tem tanta diferen\u00e7a de classe quando a gente olha para a educa\u00e7\u00e3o b\u00e1sica, incluindo o ensino m\u00e9dio, no universo representacional desses jovens. Isso j\u00e1 estava descrito na literatura, mas elas acrescentam um achado muito interessante: elas evidenciam o objetivo massivamente colocado nessa popula\u00e7\u00e3o de conclus\u00e3o do n\u00edvel m\u00e9dio, mais ou menos quando eles t\u00eam entre 17-18, em que eles t\u00eam uma idade na qual podem contribuir com a renda domiciliar.<\/p>\n

Entre os jovens mais pobres, todos eles ambicionam concluir o ensino m\u00e9dio. Boa parte deles tem como objetivo entrar na universidade, mas o c\u00e1lculo a respeito dessa escolha educacional de concluir o ensino m\u00e9dio e entrar na universidade tem a ver com a capacidade deles pr\u00f3prios se manterem na universidade. Na cabe\u00e7a das pessoas, a institucionaliza\u00e7\u00e3o da carreira educacional define o ciclo de vida, inclusive na cabe\u00e7a de pais de fam\u00edlias pobres. Eles acham que tem obriga\u00e7\u00e3o de sustentar o estudo dos filhos at\u00e9 a conclus\u00e3o do ensino m\u00e9dio. Uma vez conclu\u00eddo o ensino m\u00e9dio, se ele ou ela quiser progredir para uma universidade, isso \u00e9 uma responsabilidade dos jovens. As pesquisadoras observam que a maior parte desses jovens tem que trabalhar.<\/p>\n

Isso tem tudo a ver com que eu j\u00e1 tinha observado num n\u00edvel agregado, numa amostra representativa na Pesquisa Nacional por Amostra de Domic\u00edlio (PNAD), mas eu acho que tem uma sacada que essa literatura n\u00e3o consegue testar porque est\u00e1 lidando com dados que n\u00e3o s\u00e3o das representa\u00e7\u00f5es das pessoas e que orientam o comportamento delas. Esse trabalho ajuda a entender como esse efeito de classe pode se efetivar na transi\u00e7\u00e3o do ensino m\u00e9dio para a universidade. A explica\u00e7\u00e3o est\u00e1 muito no sentido que as pessoas atribuem a educa\u00e7\u00e3o e tem uma diferen\u00e7a de classe. Classes mais altas consideram que \u00e9 obriga\u00e7\u00e3o do pai ajudar o estudo do filho at\u00e9 o fim da universidade, enquanto os jovens de classes mais baixas consideram que a obriga\u00e7\u00e3o educacional dos pais termina na conclus\u00e3o do ensino m\u00e9dio. Se os filhos passam na universidade, a\u00ed \u00e9 obriga\u00e7\u00e3o dos pr\u00f3prios filhos assegurarem as condi\u00e7\u00f5es de conclus\u00e3o do ensino superior.<\/p>\n

Portal IDeA: Em 2020, esse sistema que vinha passando por essas mudan\u00e7as parou, todos foram para casa. O que sabemos, pelo que aconteceu em outras realidades, durante processos de grande suspens\u00e3o das aulas, \u00e9 que uma parte da popula\u00e7\u00e3o escolar n\u00e3o retorna. Quem voc\u00ea imagina que tem mais risco hoje de n\u00e3o voltar no sistema e em quais etapas? Se \u00e9 que voc\u00ea concorda com essa proje\u00e7\u00e3o.<\/strong><\/p>\n

Murillo Brito:<\/strong>\u00a0Uma vez um vi o Ariano Suassuna falando algo que me descreve. Ele falou: eu n\u00e3o sou nem otimista, nem pessimista, eu sou um realista esperan\u00e7oso. Eu quero demarcar isso porque tudo que eu vou falar daqui para frente vai parecer que eu n\u00e3o sou nada otimista, mas vai ser a vis\u00e3o de um realista esperan\u00e7oso.<\/p>\n

Eu acho que tem gente pessimista, com vis\u00f5es mais tr\u00e1gicas a respeito do que vai acontecer. Eu n\u00e3o vejo perspectiva de melhorias significativas das desigualdades, seja na frequ\u00eancia ou no acesso a determinados n\u00edveis. N\u00e3o vejo como essa paralisa\u00e7\u00e3o das aulas presenciais possa ter qualquer efeito positivo de diminui\u00e7\u00e3o dos n\u00edveis de igualdade em quaisquer n\u00edveis educacionais. \u00c9 interessante como continua relevante na \u00e1rea de sociologia da educa\u00e7\u00e3o, da educa\u00e7\u00e3o de uma maneira geral, da pol\u00edtica educacional, tudo aquilo que o relat\u00f3rio Coleman contou para gente l\u00e1 em 68, que tamb\u00e9m repercutia a suposi\u00e7\u00e3o te\u00f3rica que Bourdieu e colegas traziam para gente quando escreveram a teoria da reprodu\u00e7\u00e3o. Eu continuo achando que a escola \u00e9 um peda\u00e7o da sociedade e, portanto, desigual. A gente n\u00e3o pode pensar a escola isolada da sociedade e, portanto, a gente n\u00e3o pode ignorar a suposi\u00e7\u00e3o de que a escola tende a reproduzir as desigualdades que se d\u00e3o na sociedade. Isso significa para mim que, obviamente, os segmentos sociais menos favorecidos v\u00e3o ter mais chance de abandonar a escola.<\/p>\n

Acrescente-se a essa suposi\u00e7\u00e3o geral da sociedade o fato de que h\u00e1 uma variabilidade muito significativa na maneira como os gestores estaduais t\u00eam tratado a quest\u00e3o do isolamento. H\u00e1 estados em que as crian\u00e7as t\u00eam aulas e em outros, n\u00e3o. H\u00e1 estados em que essa pol\u00edtica est\u00e1 claramente delimitada e outros em que n\u00e3o. Esse problema decorre tamb\u00e9m, em grande medida, da absoluta inefici\u00eancia do governo federal em produzir par\u00e2metros mais centralizados e gerais para se lidar com esse problema de n\u00e3o poder continuar levando as crian\u00e7as para ter aulas presenciais na escola.<\/p>\n

Eu acho que, al\u00e9m das desigualdades sociais j\u00e1 fartamente documentadas, caracter\u00edsticas da estrutura social brasileira, a gente tem ainda o problema de n\u00e3o ter nenhuma pol\u00edtica de compensa\u00e7\u00e3o para quem est\u00e1 no setor p\u00fablico. N\u00e3o tem nenhuma pol\u00edtica que vise ter algum efeito sobre a in\u00e9rcia da reprodu\u00e7\u00e3o da ordem social que vai se efetivar nesse jogo de cada um por si. O fato de n\u00e3o ter coordena\u00e7\u00e3o \u00e9 um problema muito s\u00e9rio. O que faz com que seja ainda mais aguda a exclus\u00e3o daqueles que v\u00e3o ter dificuldades em se manterem. Ent\u00e3o, eu acho que os mais pobres v\u00e3o ter mais dificuldades, especialmente os que est\u00e3o em escolas de periferia, \u00f3bvio. E acho que que essas dificuldades v\u00e3o se dar especialmente no ensino m\u00e9dio. A gente j\u00e1 sabe que historicamente os n\u00edveis de evas\u00e3o no ensino m\u00e9dio s\u00e3o incompar\u00e1veis aos n\u00edveis de educa\u00e7\u00e3o no ensino fundamental.<\/p>\n

O problema da defasagem no ensino m\u00e9dio transcende a escola, n\u00e3o \u00e9 meramente escolar, mas tem a ver com a posi\u00e7\u00e3o do ensino m\u00e9dio no ciclo de vida desses alunos. Se a gente considerar que \u00e9 frequente a defasagem idade e s\u00e9rie no ensino m\u00e9dio, a gente est\u00e1 falando de jovens que est\u00e3o passando pelo per\u00edodo de escolariza\u00e7\u00e3o obrigat\u00f3ria na mesma \u00e9poca que est\u00e3o tendo o primeiro filho, que est\u00e3o saindo de casa, arrumando o primeiro trabalho. Tem uma s\u00e9rie de acontecimentos no ciclo de vida desses jovens que est\u00e3o na faixa et\u00e1ria do ensino m\u00e9dio que coloca para a progress\u00e3o educacional nesse n\u00edvel quest\u00f5es que n\u00e3o s\u00e3o colocadas para a progress\u00e3o educacional em n\u00edveis mais baixos. A gente tem efeitos dessas diversas dimens\u00f5es do ciclo de vida dos jovens para a continua\u00e7\u00e3o deles no sistema educacional e, agora, os problemas decorrentes da pandemia, em especial, os problemas econ\u00f4micos. Ent\u00e3o, isso vai colocar nesses jovens uma responsabilidade cada vez maior de assegurar ganhos para o sustento familiar. Eu acho que n\u00f3s vamos observar um incremento significativo da evas\u00e3o no ensino m\u00e9dio quando a gente voltar a uma certa normalidade presencial. Pelas caracter\u00edsticas t\u00edpicas desse movimento e pelas consequ\u00eancias que o isolamento tem sobre popula\u00e7\u00f5es que vivem fundamentalmente de trabalho aut\u00f4nomo.<\/p>\n

Portal IDeA: Ent\u00e3o, voc\u00ea \u00e9 mais otimista quanto ao fundamental? Podemos esperara ainda que esse impacto sobre o m\u00e9dio vai intensificar ainda mais a desigualdade no acesso ao superior?<\/strong><\/p>\n

Murillo Brito:<\/strong>\u00a0Eu diria que eu sou um realista esperan\u00e7oso, mas mesmo para um realista esperan\u00e7oso o momento n\u00e3o \u00e9 positivo. A capacidade do sistema educacional em modelar os ciclos de vida do jovem \u00e9 muito maior na educa\u00e7\u00e3o fundamental do que no ensino m\u00e9dio. No ensino m\u00e9dio eles est\u00e3o lidando com essas outras press\u00f5es, uma s\u00e9rie de quest\u00f5es que impactam sobre a progress\u00e3o educacional que, mesmo se n\u00e3o tivesse a pandemia, a gente teria operando de todo jeito. Com a pandemia a coisa fica ainda mais aguda. Eu apostaria mais as minhas fichas em um incremento das desigualdades no n\u00edvel m\u00e9dio do que no ensino fundamental.<\/p>\n

Isso definitivamente vai ter consequ\u00eancias na acessibilidade ao ensino superior porque a conclus\u00e3o do ensino m\u00e9dio \u00e9 uma condi\u00e7\u00e3o para ser eleg\u00edvel ao ensino superior. A gente poder\u00e1 observar um incremento nessas desigualdades, o que n\u00e3o \u00e9 novidade, na verdade, porque essas desigualdades no acesso ao ensino superior v\u00eam crescendo. O que a literatura vem documentando, antes da gente ter esse fator ex\u00f3geno influenciando todos as dimens\u00f5es da nossa vida, s\u00e3o par\u00e2metros de desigualdade horizontal. No acesso \u00e0 educa\u00e7\u00e3o superior, quem \u00e9 mais pobre tem mais chance de entrar no ensino privado, em universidades de prest\u00edgio mais baixo. Mesmo em universidades de alto prest\u00edgio existe uma segmenta\u00e7\u00e3o de natureza socioecon\u00f4mica entre carreiras, quem \u00e9 mais pobre vai para Pedagogia, Ci\u00eancias Sociais, Filosofia, Geografia e quem \u00e9 mais rico que vai pra Medicina, Economia.<\/p>\n

A hip\u00f3tese da desigualdade maximamente mantida se demonstra muito frut\u00edfera para se pensar esses par\u00e2metros e, se j\u00e1 havia essa tend\u00eancia consolidada no passado, eu acho que, das duas uma: ou essa tend\u00eancia se aprofunda de forma ainda mais aguda, ou ent\u00e3o essa tend\u00eancia vai se retrair e se transformar em uma progress\u00e3o do tipo 0 ou 1 \u2013 ou a transi\u00e7\u00e3o para o Ensino Superior se realiza ou n\u00e3o \u2013, porque n\u00e3o vai ter gente pobre fazendo essa transi\u00e7\u00e3o e o efeito da classe vai crescer na hora de fazer essa transi\u00e7\u00e3o de entrada na educa\u00e7\u00e3o superior.<\/p>\n

Mesmo sendo um realista esperan\u00e7oso est\u00e1 dif\u00edcil ver perspectivas positivas de diminui\u00e7\u00e3o de desigualdades em qualquer n\u00edvel de ensino. Eu diria que tem uma escadinha: os problemas abordados pelos estudos sobre estratifica\u00e7\u00e3o educacional devem ser menores no ensino fundamental e um pouco maiores no ensino m\u00e9dio, que j\u00e1 era um ponto nevral e tende a ser ainda mais.<\/p>\n

Bibliografia sobre estratifica\u00e7\u00e3o educacional<\/strong><\/p>\n

O debate internacional<\/em><\/p>\n

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O caso brasileiro<\/em><\/p>\n

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BRITO, Murillo Marschner Alves de.\u00a0Novas tend\u00eancias ou velhas persist\u00eancias? Moderniza\u00e7\u00e3o e expans\u00e3o educacional no Brasil.<\/a>Cad. Pesqui.<\/strong>,\u00a0 S\u00e3o Paulo ,\u00a0 v. 47, n. 163, p. 224-263,\u00a0 Mar.\u00a0 2017<\/p>\n

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